Fubebol (1935), de Cândido Portinari.

Ao longo dos seus mais de cem anos de existência, o futebol no Brasil atravessou momentos históricos dos mais diversos. Nas terras tupiniquins, apesar de toda a metamorfose que sofreu, o jogo não perdeu seu elemento central: a atratividade e a paixão que desperta nas centenas de milhões de nativos.

O futebol brasileiro nasceu num amadorismo elitista e se tornou um jogo de rua. Explodiu em popularidade e viu clubes sendo formados em cada bairro das grandes cidades. Sofreu um processo forçado de profissionalização, tendo que se adequar a esse modelo às duras penas. Foi usado como instrumento político por uma ditadura, rodou pela mão dos mais perversos corruptos e oportunistas, até virar um gigante e lucrativo negócio, atraindo grupos financeiros dos mais variados e forçando os clubes a se tornarem verdadeiras empresas. Em cada momento desses, viu a sua magia ser apropriada e violada por interesses privados e políticos das velhas classes dominantes locais.

Dentro dos clubes, uma clara contradição de classes se formava. Na parte superior da pirâmide futebolística estariam os tais cartolas, abastados senhores de pomposos sobrenomes e gordas contas bancárias, que vêem no jogo um ótimo terreno para articular os seus negócios. Seguidos então de uma casta quase parasitária de conselheiros, comumente atrelados aos grupos políticos hegemônicos dentro dos clubes e geralmente indicados por esses. Na base disso tudo, sofrendo todos os ônus de tudo que acontecia no futebol, estaria então o torcedor, o verdadeiro “operário” desse jogo.

Enquanto os cartolas e conselheiros se apropriam dos clubes em benefício próprio, numa outra mão as entidades organizadoras do futebol são ocupadas por figuras quase sempre questionáveis. No Brasil, o jogo de poder que envolve essas entidades, hoje burocratizadas e distantes das reais necessidades do jogo, coloca-as como mero instrumento de barganha diante dos interesses econômicos que envolvem o futebol. Nesse caso, leiam-se as Federações Estaduais, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o seu harmonioso casamento com grandes corporações que “patrocinam” o esporte.

Diante disso tudo, não seria contraditório dizer que tais entidades, por mais que lidem com esse patrimônio público que é o futebol, através das mais mirabolantes manobras políticas, não possam sofrer intervenções do poder público. São hoje entidades de direito privado e, inclusive, com fins lucrativos, mesmo que não declarem isso. Não é de assustar o interesse de tantos abutres por elas.

Acontece que, na medida em que o futebol foi se tornando um negócio cada vez mais complexo, foram surgindo novas formas de intervenção desses tais interesses privados. Como exemplos se podem citar os grupos econômicos que compram ações de clubes, empresários que agenciam jogadores usando-os como mercadorias, empresas que adquirem os direitos federativos dos atletas, patrocinadores milionários que estampam suas marcas os uniformes, grupos de comunicação donos da programação dos campeonatos, empreiteiras proprietárias de praças esportivas históricas e por último, e talvez o mais bizarro de todos: os clubes-empresa.

Todo esse interesse do mercado no futebol se deve, obviamente, por conta da atração que o jogo tem sobre os homens comuns. Como disse uma vez Antônio Afif, um dos gurus do futebol-negócio no país: “o futebol moderno tem hoje a capacidade de transformar milhões de torcedores apaixonados em potenciais consumidores”. A deturpação do real sentido do futebol existir já chegou a um grau no qual Afif pode afirmar isso sem o menor pudor.

E qual seria, então, o real sentido do futebol? A resposta é muito simples: servir ao futebol. Nesse sentido deixa-se claro que o jogo existiu e existirá independente de qual força política ou setor da sociedade se aproprie dele. E já que se compreende o futebol como patrimônio cultural, deve então ser tratado como tal, sendo acessível a todos e de controle social.

Uma vez colocado que o controle deve ser socializado, fica claro que isso seria então feito pelo seu principal ator. Não seria, portanto o velho e viciado cartola, muito menos o empresário sedento de lucros, mas o torcedor.

Hoje, enfim, o futebol nacional pode estar vivendo um novo momento. E esse momento seria o da sua retomada pelos torcedores.

Cansados de ver o jogo ser a todo instante utilizado para os mais diversos interesses privados, os torcedores brasileiros buscaram uma alternativa: uma organização própria que os representasse e que lutasse pelos seus direitos.

É assim que no final do ano de 2010 é fundada a Associação Nacional dos Torcedores (ANT), com intuito de ser a voz e a arma com a qual os apaixonados adeptos poderiam se organizar. Uma vez insatisfeitos com os rumos que o futebol tomava no Brasil, a ANT buscaria então ser uma entidade representativa dessa “categoria”.

O que se viu, logo após as primeiras duas semanas de existência e a associação de mais de 2 mil torcedores por todo o Brasil, foi que a pauta era urgente. Não se tratava mais de uma idéia solta aqui e ali a partir de uma extensa discussão sobre concepções: o pensamento de que o futebol está deixando de ser um direito de todos já estava consolidado.

Em seu manifesto de lançamento, o “Nossa missão em 7 pontos para homenagear Garrincha, a alegria do povo”, a ANT traçou as bandeiras que buscavam contemplar os principais problemas enfrentados pelos torcedores em nome do futebol-negócio.

A principal delas, uma realidade já presente nos países europeus, e que anda em passos largos no Brasil é a elitização, ou higienização, dos estádios. Pegando carona nos megaeventos esportivos, o principal deles a Copa do Mundo da FIFA, com a construção de arenas multiuso, verdadeiros shopping centers com um campo de futebol no meio, diversos estádios do mundo não podiam mais se sustentar com ingressos nos antigos valores. Com isso foram extintos os setores populares (famosas gerais), reduziu-se a capacidade dos estádios completando a sua estrutura com cadeiras numeradas e foram introduzidos serviços aos quais poucos podem ter acesso.

Os “torcedores” desejáveis hoje seriam aqueles que pudessem bancar essa farra: a alta classe-média bem sucedida economicamente acima de trinta anos, os ricos e os turistas. Exatamente aqueles que possuíssem um poder aquisitivo adequado a tais condições. Em termos mais precisos: consumidores em potencial. Esse padrão pode ser visto sem muita dificuldade em todos os principais estádios da Espanha, Itália, Inglaterra, e em menor grau, na Alemanha. Exatamente por conta da resistência dos torcedores organizados.

Esse modelo de estádio também acarreta numa outra grave agressão aos direitos do torcedor: o direito de fazer a festa. É difícil imaginar um jogo sem a euforia e o show de pirotecnias, bandeira e diversos adereços típicos das torcidas. No Maracanã, no seu período “inter-reformas”, após o fim da histórica Geral até o seu novo fechamento para novas mudanças por comta da Copa do Mundo de 2014, uma cena muito incomum já podia ser notada. Grupos “especializados” de policiais forçavam os torcedores a se manter sentados. Tal qual um cinema, o futebol seria levado como mero entretenimento, e ai de quem ousasse desrespeitar. O reflexo disso foi um ambiente gélido, sem a velha magia do setor que sempre foi a cara do torcedor brasileiro, festivo e irreverente.

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Com esse novo padrão de comportamento os mandatários do futebol brasileiro também poderiam colocar em prática um sonho antigo: a criminalização das torcidas organizadas. O Estatuto do Torcedor, editado em 2010, parte do processo de adaptação do país à Copa que viria, foi o mais brutal dos golpes já deferidos contra as T.O’s. Com o apoio da grande mídia, o projeto passou quase que unânime, tratando o torcedor organizado/uniformizado como um bandido, abusando do seu status de classe social inferior para enquadrá-lo como um verdadeiro inimigo do futebol.

Se tratando da mídia, mais precisamente, tem-se hoje a compreensão incontestável de que essa é a principal força econômica e política que vem a intervir no futebol. A ANT, numa das suas bandeiras, mostrou como os interesses das grandes empresas televisivas sempre eram colocados como prioridade, em detrimento do torcedor. Não bastassem os ingressos absurdamente caros, o amante do futebol precisa atualmente passar por um verdadeiro teste de resistência, sendo obrigado a assistir aos jogos do seu clube do coração em horários desumanos, como 22 horas, em pleno meio de semana.

Soma-se a isso, e também é uma das lutas contempladas pela ANT, a falta de um sistema de transporte público de qualidade, que garantisse a ida ao jogo e a volta para casa com conforto e segurança. Não é raro ver torcedores sem ter como voltar para casa ao sair do jogo para além da meia-noite e não encontrar ônibus. No Rio de Janeiro, o Grupo Especial de Policiamento dos Estádios (GEPE) adota como tática de segurança a diminuição da frota em dia de jogo para reduzir os tais torcedores “indesejáveis”.

Compreendendo os efeitos que o futebol tem na sociedade, positivos ou negativos, a Associação Nacional dos Torcedores também compreendeu que as suas pautas não se reduziam aos “direitos do torcedor”. A dinâmica social na qual está inserido o futebol também deveria ser contemplada.

A partir disso a ANT entrou num extenso debate acerca dos efeitos dos megaeventos esportivos no Brasil, dentre eles a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Com a experiência vivida no Rio de Janeiro após os Jogos Panamericanos de 2007, seria demasiado irresponsável não alertar a população para determinados efeitos.

O principal deles é a arbitrariedade do Estado ao decretar a remoção de comunidades em nome dos jogos. A construção de uma infra-estrutura toda especial, argumento mais batido e tratado como trunfo dos defensores dos megaeventos, na realidade só satisfaz o interesse dos grupos econômicos que planejam lucrar como nunca antes, durante e depois das competições.

Como nos mais diversos aspectos da vida moderna, o fator ser humano é colocado abaixo do fator dinheiro. Milhares de famílias são obrigadas a mudar para regiões periféricas das grandes cidades em nome de duplicações de avenidas, ampliação de linhas de metrô, construção de estacionamentos, dentre outras obras que só existem, no fim das contas, para valorizar o espaço urbano onde se localizarão as grandes redes hoteleiras, pontos turísticos e condomínios de luxo.

Por conta disso a ANT vem buscando construir os Comitês Populares da Copa, iniciativas que acontecem nas cidades-sede dos jogos, compostas das mais diversas entidades da sociedade civil, desde ONGs até associações de moradores, centrais sindicais e movimentos sociais. Comprometidos em fiscalizar e denunciar os ataques aos direitos dos cidadãos brasileiros, os Comitês tem proporcionado uma importante articulação entre tais setores organizados, desqualificando a lenda de que os megaeventos trariam apenas benefícios. Aliás, muito pelo contrário.

Por último, e não menos importante, está a pauta da democratização do futebol. Qual a legitimidade que o presidente da CBF tem hoje no grosso dos torcedores brasileiros? Eleito por uma parcela mínima de dirigentes de federações estaduais, comumente agraciados com regalos pessoais, dentro de uma estrutura antidemocrática de eleições, Ricardo Teixeira já completa 22 anos à frente da entidade máxima do futebol nacional. Tomando-a como um brinquedinho particular, da mesma forma que o seu sogro João Havelange, principal fundador desse modelo de futebol que só vem trazendo malefícios.

É com esse poder que Ricardo Teixeira consegue fazer e desfazer campeonatos a seu bel-prazer. Com esse poder que consegue implodir uma entidade que lutava pela autonomia dos clubes, por mais que tivesse suas contradições, que era o Clube dos 13. Com essa coroa imaginária e inquebrável que adoçava a boca da sua fiel escudeira Rede Globo à frente dos interesses gerais do futebol nacional.

Mostra-se urgente uma intervenção na CBF. Não há mais condições de permitir que um único sujeito, girado para dentro do seu próprio umbigo tenha o direito de controlar os caminhos do esporte mais amado pelos brasileiros. O mesmo deve-se dizer dos clubes.

Durante muitas décadas o futebol, como qualquer outro esporte que atraísse as massas, sofreu criticas de diversos setores combativos da sociedade. Sua relevância só entrava em cheque na medida em que se pontuava a sua instrumentalização alienante pelas mãos do Estado e das
classes dominantes.

Demorou-se um longo tempo até se compreender que, como os diversos outros aspectos da vida humana, o futebol, essa “religião leiga da classe operária”, já diria Eric Hobsbawn, pode ser apropriado das mais diversas formas, para os mais diversos fins. Por que não criar as condições mínimas para que possa apropriado por quem realmente se interessa por ele? Por que não torná-lo um instrumento de interesse popular e com poder transformador?

Esse é o desafio árduo e utópico que a Associação Nacional dos Torcedores se propôs a encarar. O caminho será, como em todos os casos, a luta.

*A Associação Nacional dos Torcedores pode ser encontrada em http://torcedor.org. Irlan Simões, um dos autores deste texto, passará a escrever em Outras Palavras sobre o Futebol além da Mercadoria.

**Publicado originalmente no site Outras Palavras.