Eurocopa e Olimpíadas de Londres revelam: elitização do esporte e restrições à manifestação dos torcedores são tentativa de impor metrópoles militarizadas.
Na última edição da coluna, examinamos em detalhes a tentativa de impor, no futebol brasileiro, uma “reforma” que visa a torná-lo elitizado e segregador. Também debatemos o papel que cumpre a mídia esportiva, na concretização deste passo. Vale discutir agora o que há de real por trás dos argumentos que pedem “assegurar a segurança nos estádios”.
Para isso, é preciso, antes de tudo, resgatar o caráter e o pensamento que hegemoniza as instituições de segurança. Elas retrocedem para uma perspectiva cada vez mais retrógrada do combate violento e destrutivo aos fenômenos que supostamente contestam a ordem vigente.
O que grande parte da sociedade ainda não compreende é que uma instituição como a Polícia Militar, responsável por garantir eventos como jogos de futebol, não é – e nem pretende ser – neutra. Ela cumpre um papel político claro e serve ao interesse do grupo e da ideologia que comanda o Estado.
Isso parte principalmente do caráter militarizado da corporação. Esta particularidade, já superada em diversos países no mundo, mantém-se viva no Brasil, carregando em si “um modelo de polícia que ainda está fortemente atrelado à defesa do Estado, e não à defesa do cidadão”, nas palavras de Luis Antônio Francisco de Souza, da Unesp.
Para o professor e deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), famoso por sua formulação sobre esse tema, a “lógica que impera é a da necessidade de proteção da sociedade em situação de guerra”. Esta concepção demonstra a incapacidade das instituições policiais para lidar com uma ordem democrática. É a partir disso que ele afirma: um dos efeitos dessa lógica é “a suspensão dos direitos e o estancamento das liberdades para reassegurar a ‘segurança’ e legitimar a militarização das ações governamentais”.
Outro elemento levantado por Freixo, ainda na caracterização da Polícia Militar brasileira, é a tendência de “produção do inimigo público e difusão do medo popular em relação ao grupo social criminalizado”. A partir desses dois pontos, deslocando o debate para o futebol, é possível compreender o tratamento dado às torcidas organizadas.
Uma vez que há um projeto de reestruturação e ressignificação do torcedor – agora definitivamente transformado em consumidor –, as “organizadas” seriam um elemento indesejável e incompatível com este processo. É por isso que se torna tão importante para os interessados no “futebol-negócio” (dirigentes, “donos” de clubes, anunciantes, patrocinadores, mídia esportiva comercial, etc.) demonizar essas torcidas. Inclusive, sem fazer qualquer esforço para mostrar a diferença entre instituições e seus integrantes – um assunto já discutido nesta coluna.
Experimentações assombrosas
Acontece que uma “política de segurança pública” concretiza-se por meio de ações práticas. Na medida em que são colocadas no plano do real, estas concepções vão mostrando seu caráter. Não atingem apenas os grupos eleitos como “inimigos públicos”. Voltam-se principalmente contra os setores empobrecidos e críticos ao sistema – que passam a ser caracterizados como inimigos.
Eis um caso que chamou muita atenção para o grau de “criatividade” que os órgãos responsáveis pela segurança nos estádios já atingiram. Aconteceu na Polônia, uma das sedes da Eurocopa de 2012, que lançou mão de uma verdadeira obra da engenharia militar moderna: o tanque ultrassônico.
Perceba que ele poderia, em termos gerais, ser considerado “uma arma não letal”. Talvez até seja “tão pouco letal” quanto os teasers, armas de choque que causam ataques cardíacos, ou os sprays de pimenta que cegam. O tanque de som pode ensurdecer o alvo, mas estaria designado, supostamente, a servir de instrumento de dispersão dos hooligans durante o torneio internacional.
Segundo Jonas Gabler, estudioso da cultura futebolística na Alemanha, o futebol é historicamente usado como tubo de ensaio para políticas de segurança pública, das mais brandas às mais violentas, que posteriormente serão aplicadas de forma mais ampla.
Durante a Eurocopa, houve grande preocupação com a possibilidade do encontro entre ultras e hooligans de diferentes origens e motivações para conflitos. Mas nada impede de dizer que essas “inovações” tenham fins muito mais amplos (agradeço aqui a informação de Fred Elesbão, companheiro do velho TorcidaGanhaJogo.blogspot.com que sempre traz notícias do Velho Mundo das velhas ideias, e acompanha de perto a vida dos ultras europeus).
Quem também compartilha dessa percepção é Juliana Machado, integrante do coletivo Desentorpecendo a Razão e pesquisadora dos megaeventos esportivos. Segundo ela, “a Copa do Mundo é um elemento-chave desse processo de militarização das cidades”. Juliana cita o livro Cities Under Siege – The New Military Urbanism (Cidades sitiadas – o novo urbanismo militar), de Stephen Graham, autor que estuda a relação entre urbanismo e militarização.
A pesquisadora elenca alguns exemplos para embasar sua posição: a colocação de mísseis em tornos das praças esportivas em Londres, nas Olimpíadas, o sistema de segurança por videomonitoramento em estádios brasileiros para identificar “ameaças à segurança”, a contratação, pelas cidades-sede dos megaeventos esportivos, de empresas privadas de segurança de Israel. Tais exemplos já são ou serão vivenciados em breve no Brasil.
Adestramento e limpeza social
Recentemente a Fifa resolveu bater o martelo numa discussão que envolveu países europeus e o Brasil. Proibiu-se o uso de sinalizadores e todo tipo de fogos de artifício em estádios.
Apesar de soar como medida ínfima, diante de medidas muito mais graves, a proibição da pirotecnia é mais um dos aspectos do processo de reformatação do público assistente/consumidor nos estádios. Assim como na Europa, o Brasil vem caminhando para um modelo de torcida que se resume ao “sentar-comer-bater palma-e partir”.
Isso acontece porque a “segurança pública” não se resume meramente à violência física. A transformação cultural do “torcer” é fundamental nesse processo. No Brasil, ela se arrasta desde a proibição do uso de bandeiras e faixas em São Paulo. Toma corpo na instrução de assistir sentado aos jogos e na setorização dos estádios. Vem adquirindo feições cada vez mais agressivas, como os jogos com torcida única e a proibição das torcidas organizadas.
No Rio de Janeiro, como afirmou Marcos Alvito, integrante da Associação Nacional dos Torcedores, o Grupo Especial de Policiamento em Estádios (Gepe) instrui as empresas de transporte público, a frota que leva usuários de bairros pobres para os estádios. Imagine então o que será do acesso ao Maracanã, após a Copa do Mundo.
Isso tudo demonstra que o futebol-negócio é um projeto excludente – mas necessita, para ir adiante, de intervenções diretas por parte do Estado. A ação coordenada entre grupos empresariais que tiram proveito do esporte, “cartolas”, corporações policiais e governantes vem consolidando o processo.
Qual a saída?
A luta para reverter esse processo pode assumir diversas feições: garantia de áreas populares nos estádios, luta pela meia entrada, cobrança de planos de fidelidade mais baratos, ou recuos das “reformas”.
Acontece que os clubes brasileiros ainda possuem estruturas arcaicas e não são elemento de resistência ao processo que afasta os torcedores. Muito ao contrário, suas direções desejam o modelo de futebol-negócio.
Uma mudança verdadeira só poderá começar com os torcedores. São o único setor ligado ao futebol hoje capaz de enxergar as consequências do processo e enfrentá-lo. Serão os mais atingidos, caso avance a elitização. Talvez possam resistir a ela. São os mais interessados em democratizar os clubes, descentralizar as federações, exigir acesso facilitado aos estádios, lutar pela cultura torcedora – o que inclui impedir a elitização e a padronização das formas de se manifestar.
O torcedor poderá dizer que política de segurança deseja para os dias de jogos. Isto estende-se para a garantia de segurança nos bairros – onde ocorrem os conflitos entre torcedores violentos, de “organizadas” ou não –, transporte público condizente com a demanda da torcida, programas de associação compatíveis com as faixas socioeconômicas dos torcedores, etc.
Ainda há tempo de evitar a “europeização” do futebol brasileiro. Não na perspectiva da qualidade do futebol jogado dentro de campo – mas do modelo, do sistema-futebol ali instalado. Uma vez superada a ameaça, será preciso consolidar uma nova concepção de futebol, de clube e principalmente de vida.
* Publicado originalmente no site Outras Palavras.