Uma das grandes riquezas das metrópoles se apresenta na periferia, com suas expressões culturais comunitárias. Apesar de serem estigmatizadas pela mídia que constrói estereótipos desse mundo, esse imaginário está mudando. Já há estudos que apontam para uma “estética da periferia”, com interações com a chamada grande arte.
[media-credit name=”Luciano Feijão” align=”alignright” width=”300″][/media-credit]Uma anedota contada por Slavoj Zizek em Bem-Vindo ao Deserto do Real! nos diz: “Um operário alemão consegue um emprego na Sibéria. Sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: ‘Vamos combinar um código. Se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira’. Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: ‘Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa – o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha’”(1).
Ao circular pelas bordas da cidade de São Paulo, constata-se uma imensa variedade de culturas: praticantes de aulas de expressão teatral e dança, poetas fazendo intervenção, ativistas promovendo músicas populares mixadas, grupos em aula de computação, artistas produzindo seus vídeos, rappers da “perifa”, feiras culturais, performances das mais diversas linguagens, enfim fazedores de culturas vivas na cena urbana brasileira. São movimentos que reivindicam e fazem mais cultura, grupos que se organizam com temáticas gerais ou específicas (meio ambiente, moradia, economia da cultura, etc.). Em lugares deteriorados por falta de investimento público, surgem grupos, artistas, atores, movimentos que promovem atividades inovadoras e dão vida ao caos. Tudo isto compõe um cenário efervescente e dinâmico de políticas e gestões culturais independentes e audaciosas.
Nas margens do “hiperliberalismo” globalizado emerge uma terceira cultura que aponta para novas e sutis realidades, “cidades periféricas” com sua própria centralidade, formando movimentos de convivência e redes culturais que criam novos modos de vida em comunidade.
Esses agentes locais nadam na contracorrente da lógica que nega direitos sociais e provoca segregação, isolamento, miséria e falta de infraestrutura, formando um caldo de cultura de violência que entra nos poros da sociedade. Resultado: esgarçamento das energias dos que vivem do trabalho e perda de pertencimento comunitário, tendo como subproduto o assassinato de jovens negros e mestiços(2).
Na periferia das cidades
Esses movimentos sociais emergiram a partir dos anos 1990 e se constituíram por jovens das bordas da cidade com baixíssimo poder aquisitivo. Como afirma Graciela Hopstein: “Trata-se de movimentos que, por intermédio de estratégias de produção cultural, buscam alternativas para uma dinâmica urbana marcada por um alto grau de segmentação, estratificação e exclusão, isto é, por profundas desigualdades sociais (velhas e novas) no que diz respeito à organização da produção e aos modos de fixação e mobilidade no território da cidade”(3).
São movimentos e atores de subúrbios considerados “feios, sujos e malvados”, aliás, glamourizados pela mídia, mas que não têm o direito de circular pelas áreas “nobres” da cidade. Quando as artes periféricas são abordadas, as opiniões se dividem. Por um lado são vistas como dinâmicas, pulsantes e cheias de vida; por outro, são vistas sem legitimidade para participar dos espaços consagrados, já que sua estética ainda não teria atingido a maturidade artística como uma “arte de museu”.
Mas o imaginário sobre esses movimentos vem sofrendo mudanças ao longo do tempo. Há vários estudos que apontam para uma “estética da periferia”(4), inclusive com interações com a chamada grande arte. Uma outra estética é apontada pelos estudiosos: estética do prazer de viver e de afirmação política que partilha sentidos vividos(5). Por exemplo, os movimentos funk do Rio de Janeiro queriam ser reconhecidos pela alegria de se dançar e se expressar culturalmente, em contraponto à imagem produzida pela mídia como grupos violentos. Vê-se aí a contradição do morro e do asfalto, espaços geoculturais que evidenciam uma luta pela sua ocupação(6).
Sem pretender “essencializar” as culturas periféricas como algo acabado – já que são culturas com alto grau de “inacabamento” por serem vivas e pulsantes –, e para além dos slogans da mídia, é preciso considerar que esses atores ressignificam os espaços públicos com intervenções inovadoras. Não devem ser vistos como uma “reserva” cultural, mas sim como interlocutores legítimos que dialogam com os discursos das mídias, das manifestações urbanas e das artes consagradas, produzindo uma mixagem cultural.
Bolsões de resistência
Estamos num momento de superação do binômio centro-periferia, pois os intercâmbios sociais levam ao cruzamento de barreiras geoculturais. Os mapeamentos nos informam que a comunicação urbana desses novos atores culturais transbordam as atividades locais(7). As práticas de periferia deixam seus signos em vários trajetos e percursos da cidade, operando com interações artísticas questionadoras do establishment. Por exemplo, os grafites enunciam um modo de comunicação com interações de grupos distintos, disputando territórios físicos e simbólicos, ou mesmo construindo relações de solidariedade com outros “pedaços” urbanos, evidenciando uma dinâmica viva no fazer cultural.
Nesses bolsões de resistência, são produzidos saraus, noitadas culturais, atividades de formação cultural, etc., como é o caso da Cidade Tiradentes, bairro da Zona Leste de São Paulo. Ali há uma vida social e cultural intensa com a presença de movimentos de hip hop, grafite, teatro de rua, vídeo, direitos humanos. O Grupo de Teatro Pombas Urbanas se fixou ali, realizando espetáculos, encontros e oficinas teatrais, em um rico diálogo intercultural.
Entidades de cooperação, como o Centro Cultural da Espanha em São Paulo, em parceria com o Instituto Pólis, promoveram ali o Mapa das Artes da Cidade Tiradentes, ação essa que se tornou o “registro de uma geração”, conforme relata Daniel Hylário, agente cultural daquele bairro que trabalha com uma Rede de Artistas da região(8).
Mas não bastam investimentos pontuais, é preciso ativar os fundos públicos nessas regiões, juntamente com uma mudança de modelo de gestão territorial que considere a criatividade da população e sua economia criativa. Com isso, também é preciso considerar os limites dos recursos da sociedade civil na resolução da exclusão social, não por incapacidade da comunidade, mas porque é papel dos poderes públicos (Prefeitura, Estado e União) garantir o acesso e a promoção dos direitos sociais, culturais e ambientais. Destaque-se, nesse aspecto, o papel do Projeto VAI na promoção e incentivo de produções culturais prioritariamente de grupos com menor capacidade financeira, uma experiência de política pública com grande estabilidade e inovadora, realizado na cidade de São Paulo(9).
Alguns grupos de grafite saem de seus lugares para fazer uma ocupação da cidade por meio de escritas (textos, grafites, poemas), o que torna as cidades lugares de linguagens, evocações, sonhos, desejos e imagens, compondo um cenário de intenso diálogo cultural, o que mostra que essas práticas não querem se isolar em suas “reservas”. Eles incidem no território urbano por meio de uma comunicação que transforma a cidade em espaço polifônico com narrativas que demarcam territórios e revelam práticas invisíveis. Suas atitudes buscam uma política de convivência no espaço da grande cidade: querem ser reconhecidos pelo que são, com a imagem que desejam mostrar.
Noutra ponta da cidade, na Zona Sul de São Paulo, a Cooperifa promove uma intensa movimentação, com a participação maciça de moradores jovens que se interessam pela questão cultural. Os saraus ali promovidos todas as semanas são sempre muito frequentados. Há também outros locais em que se realizam saraus na Zona Sul da cidade, como o do Binho. Além de serem lugares de apresentação artísticas, os vários espaços socioculturais da Zona Sul também abrigam os “novos literatos marginais” que fazem resistência e buscam publicar suas obras e, para isso, se organizam em cooperativas e microeditoras, bem como se inscrevem em editais públicos para produzir suas obras(10).
Em um cenário de subemprego e carência de equipamentos culturais, é de se destacar o caso emblemático de Ferréz: um dos autores que entrou na cena literária do bairro Capão Redondo, com vários livros publicados, entre eles, Capão Pecado(11). Como produtor cultural divulga os produtos locais na região e no centro da cidade. Vindo de uma “realidade triste”, ele comenta: “Sou como qualquer cidadão da periferia, a única diferença é que eu gostava de ler. Essa diferença me salvou”(12). Este exemplo prova que há uma economia da cultura com potencial de criar empregos e renda para a população local sem que tenha de sair de lá.
O ativismo literário vem assumindo relevância nos debates sobre as periferias, acentuando-se a necessidade de conhecer melhor qual a função dessa arte nesses espaços e seu sentido para a cidade. Essa produção cultural tem dialogado intensamente com outras expressões socioculturais, como o grafite, o rap e outras modalidades urbanas, configurando-se como vozes de comunidades silenciadas no meio urbano.
Além de ser instrumento de intervenção social ou política, a literatura é poderoso meio de interpretação da realidade sensível das regiões limítrofes, na qual se produzem textos inconformistas com “a vida como ela é”, e as realidades impostas pelos grupos hegemônicos da sociedade midiática (rádio, TV, jornais).
Com suas artes, os novos atores representam dramaticamente seus modos de estar nos territórios muitas vezes arredios ao fazer cultural e à própria vida, mostrando sociabilidades ainda não percebidas no cenário contemporâneo, fazendo-se ser reconhecidos como sujeitos culturais legítimos na cidade. Suas produções culturais se afirmam com visão própria, com “estéticas” que denunciam a exclusão social decorrente de intervenções das transnacionais e criam espaços de sociabilidade comunitária, inclusive dialogando com a lógica que procura fazer da “diferença” mais uma mercadoria. São artes com “linguagens íntimas na comunicação entre jovens, quando buscam se entender e se conhecer em resposta às questões existenciais” e que “podem estimular a indignação frente às injustiças sociais e são inspiradoras de mudanças de atitude no papel da sociedade civil”(13).
Culturas livres
Movimentos sociais de cultura de diversas partes do Brasil se mobilizam e se manifestam pelas práticas das culturas “livres” e pela ocupação dos espaços públicos. Um dos palcos destas manifestações são as grandes metrópoles. Cabe a uma política de cultura democratizante impulsionar essas práticas, apoiando-as e abrindo mais espaços para uso de todos.
O campo da cultura é um lugar de disputas simbólicas, econômicas e sociais, e nele devemos atuar contra todas as formas de exclusão contemporânea, radicalizando a política de cultura com uma cultura política que direcione recursos públicos para projetos coletivos e individuais. Cidade Tiradentes é uma cidade criativa, e ali a cultura exerce função primordial de agregação social e existencial, com uma rica diversidade artística. Um projeto de economia criativa, a ser financiado pelas agências públicas, precisa levar em consideração essa variedade cultural, investindo maciçamente nas regiões mais vulneráveis do ponto de vista social. Faz-se necessário investir aí, juntamente com o melhoramento da infraestrutura cultural e o incentivo da produção de bens e serviços artísticos.
É preciso fazer com que as políticas públicas de cultura desenvolvam projetos que deem visibilidade a esses atores desconhecidos por meio de projetos coletivos na internet com blogs e sites, propiciando manifestações e agregações de movimentos sociais, com espaços virtuais que tenham a gestão das comunidades. Os coletivos já se organizam, mas é preciso reforçar essas organizações no contexto de cibercultura democrática que deve servir para expor os outsiders no cenário das cidades e nas “telas visíveis” mundiais.
Esses movimentos e grupos apontam, com outros atores sociais e culturais, para a reconstrução do percurso das diversas práticas existentes no Brasil e no mundo: como fator de coesão são práticas inquestionáveis e, ainda que não possamos prescindir dessa dimensão fundamental, é preciso atentar para o fato de que os conflitos instaurados pelo ethos vigente vão além da visão artística. A natureza política e econômica desses conflitos pode bloquear as heterogeneidades culturais e transformá-las em produto consumível, neutralizando o potencial crítico desses atores.
De qualquer maneira, essas vozes dissonantes interagem no cenário social e cultural, ora tomando as ruas, ora fazendo a resistência cultural no cotidiano. Apesar das catástrofes do “turbocapitalismo”, as culturas locais tecem uma trama composta por um conjunto de linhas afetivas e sociais que criam realidades inusitadas, fazendo com que, por meio de uma poética social de suas vivências, experiências, referências e conteúdos culturais ampliem os direitos culturais na direção do direito às cidades brasileiras.
Como afirma a Carta das responsabilidades do artista, os artistas devem “fortalecer intercâmbios e oportunidades de diálogo intercultural, base de novos paradigmas para uma humanidade que leve em conta a paz, a ética e o reencantamento do mundo”(14).
Enfim, a diversidade cultural das periferias deve abrir caminhos para o pensamento crítico, criativo e cooperativo das artes que elaboram novas realidades sensíveis e novos paradigmas de criatividade colaborativa(15).
NOTAS
1 Slavoj Zizek, Bem-vindos ao deserto do real!, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003, p.15.
2 Jorge Yúdice, A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004.
3 Graciela Hopstein, In: Emir Sader e Pablo Gentili, Políticas públicas de cultura: Dilemas, diversidade e propostas, Rio de Janeiro, Revista Rio de Janeiro, n.15, jan–abril de 2005, p.73.
4 Veja-se o projeto “Estética da periferia”, promovido pela ONG Ação Educativa, CCE-SP, SESC-SP e NAU-USP (www.acaoeducativa.org.br)
5 Jacques Rancière, A partilha do sensível: Estética e política, tradução de Mônica Costa Netto, São Paulo, EXO experimental org.; ed.34, 2005.
6 Jorge Yudice, op. cit.
7 Cf. blog: www.mapeamentossocioculturais.wordpress.com, acesso em 7 de abril de 2011.
8 Cf. o site www.mapadasartescidadetiradentes.org.br
9 Projeto da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.
10 Edições Toró, Revista Literatura Marginal.
11 São Paulo, Labortexto Editorial, 2000.
12 Diário de Guarulhos, 15 de maio de 2011, p. 15.
13 Carta das responsabilidades do artista, coordenação geral Hamilton Faria e Pedro Garcia, Instituto Pólis, 2010, p.15.
14 Ibidem, p.17.
15 Agradeço a interlocução de Hamilton Faria, Altair Moreira e Ana do Val na produção desse texto.
* Valmir de Souza é doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador-associado da área de cultura do Instituto Pólis e autor do livro “Cultura e literatura: diálogos”. Faz parte da diretoria do Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos (Simpro Guarulhos).
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.