Olhe a imagem abaixo, que está neste link em muito maior resolução.
Neste outro link, há uma afirmação radical sobre a imagem acima: google está destruindo sua memória. Será? O argumento é que os serviços de google, destinados a organizar e encontrar toda a informação do mundo [inclusive a sua e a minha, pessoais] estão mudando, de forma radical, o que costumamos chamar de memória.
Este tipo de discussão não começou por causa de computadores e internet. Vem de longe, desde quando nossos cérebros, depois de começar a criar ferramentas para estender as capacidades intrinsecamente físicas do corpo [pense facas, espadas, alavancas…] começou a pensar em ferramentas para estender o próprio cérebro.
Como a escrita, por exemplo. A escrita [lá no começo dos tempos] fez com que parte de seu cérebro pudesse ir a lugares… sem ir lá fisicamente. Como assim? Cartas, por exemplo. Sem escrita, a única forma de você dizer algo a alguém distante era ir até a pessoa com quem você queria se comunicar.
Mais: a escrita passou a levar partes de seu cérebro a tempos onde ele não iria. O que você escreve, hoje, representa parte do que você pensa e, com um pouco de sorte, vai sobreviver a seu próprio corpo por muitos anos. Milênios, talvez.
Escrita é memória. Um diário é uma memória. eu e você escrevemos um blog para registrar o que pensamos sobre coisas que nos interessam. É muito provável que, no longo prazo, a importância de um blog seja muito maior para [ou sobre] quem escreve do que para quem lê.
O debate sobre o impacto da escrita na memória existe pelo menos desde a grécia antiga. Em fedro, platão mostra um diálogo entre theuth [o “inventor” da escrita] que vai promover sua criação para thamus, o deus-faraó que reinava sobre o egito. Diz theuth:
“Essa invenção, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e promoverá sua memória, pois isso que descobri é um elixir (phármakon) para a memória (mnémes) e para a sabedoria (sophías).”
Ao que thamus responde:
“Ó muito inventivo Theuth, alguns têm a habilidade de descobrir as artes, outros têm a habilidade de saber qual o benefício e malefício para aqueles que as utilizam. E tu, que és o pai da escrita, foste conduzido pela tua afeição a atribuir-lhe um poder oposto ao que realmente possui. Pois isso vai produzir esquecimento na mente daqueles que a aprendem: eles não vão exercitar a memória por causa da sua confiança na escrita, que é algo exterior (éksothen), provinda de caracteres alheios, e não vão eles mesmos praticar a lembrança interior (éndothen), por si mesmos. Tu inventaste um elixir da lembrança (hypomnéseos), e não da memória (mnémes), e tu ofereces aos teus discípulos uma aparência de sabedoria, não verdadeira sabedoria, pois se tornarão muito informados (polyékooi […] gignómenoi), sem instrução, (áneu didakhês) e terão, assim, a aparência de que sabem de várias coisas (polygnómenes) quando na verdade são, na maior parte, ignorantes e difíceis de conviver, já que não são sábios, mas apenas aparentam ser.
A citação acima, com ênfase do blog, está em “o fedro e a escrita”, de marcus reis pinheiro, leitura importante pra quem quiser entrar nos detalhes desta conversa.
Como se vê, o debate sobre ferramentas que estendem o cérebro vem de longe. E hoje? Será que o business insider pode simplesmente afirmar, qual thamus, que google está “destruindo” sua memória? não. google, e todo o ambiente informacional baseado na internet ao nosso redor, é parte de um longo e complexo processo [r]evolucionário que [re]cria métodos, técnicas, ferramentas e ambientes que estendem as capacidades humanas em todas as direções.
Se fazemos o exoesqueleto robótico parcial que ajuda a levantar e carregar peso, aumentando nossa força física, porque não fazemos um conjunto de ferramentas como as de google, para nos lembrar de nossos compromissos, encontrar a informação [seja qual for, inclusive caminhos] no mundo, guardar todos os nossos textos, livros e arquivos?
Claro que esta informaticidade vai mudar nosso mundo e nos mudar. deve estar mudando o que costumávamos chamar de humanidade, inclusive. mas, sendo tudo baseado em tecnologia [como a escrita!…] e sendo tecnologia o domínio do possível… se for possível ser feito, será.
Depois, como no caso da escrita, veremos as consequências.
PS: se thamus tivesse proibido a escrita e se isso valesse até hoje, que seria do imaginário [e do] brasileiro sem [por exemplo] machado de assis, ariano suassuna, guimarães rosa, nélson rodrigues…
* Silvio Meira é fundador do www.portodigital.org e cientista-chefe do www.cesar.org.br, escreve mensalmente para a Folha de S.Paulo.
** Publicado originalmente no site EcoD.