Denúncias feitas por populações atingidas associam modelo de desenvolvimento a piora na qualidade de vida.
Altamira, no Pará, e Santa Cruz, no Rio de Janeiro. O que estas duas regiões têm em comum é que nelas estão em curso projetos de grandes empreendimentos que têm causado mobilizações da população do entorno e denúncias de agravos à saúde e violação de outros direitos humanos. Na região de Altamira, no Pará, o consórcio Norte Energia acaba de receber do Ibama uma licença de instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte). Em Santa Cruz, zona Oeste do Rio de Janeiro, a Tyssenkrup Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) já está em funcionamento e na penúltima fase de licenciamento. Nos dois casos, há uma resistência crescente das populações do entorno e de movimentos sociais quanto à instalação definitiva dos empreendimentos. Os moradores alegam problemas de saúde, econômico-financeiros, como o comprometimento de atividades produtivas, de violência, de impactos ao meio ambiente, entre outros. A UHE Belo Monte e a TKCSA são apenas dois casos em que escolhas produtivas conflitam com os interesses e direitos das populações. Nessa batalha, quem sai ganhando?
A história mostra que muitas vezes a corda arrebenta para o lado da população atingida e o saldo acaba sendo muito oneroso, inclusive para o próprio poder público que incentivou os grandes empreendimentos. Um caso emblemático, que inclusive voltou a ser debatido recentemente em uma audiência pública promovida pela comissão de direitos humanos do Senado, é o do município de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. De acordo com o diretor do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, Guilherme Franco Netto, presente à audiência, 80% da população da cidade está contaminada por resíduos de uma mineradora francesa, que se instalou no local na década de 1960 e permaneceu até 1993. Santo Amaro da Purificação é considerada a cidade mais poluída por chumbo no mundo, metal responsável por causar uma doença conhecida como saturnismo, que provoca dores agudas em todo o corpo, impotência sexual nos homens, aborto nas mulheres e má-formação nos fetos. Segundo o senador Walter Pinheiro (PT-BA), que acompanha o caso, são necessários cerca de R$ 300 milhões para a descontaminação da cidade, atendimento em saúde, indenizações, entre outras ações.
No caso de Belo Monte e da TKCSA, populações locais, em parceria com pesquisadores, entidades e movimentos sociais têm tentado se organizar para prevenir problemas dessa ordem. No dia 24 de maio, uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) cobrou do poder público o encerramento das atividades da TKCSA e a não concessão da licença definitiva para a empresa. Um dia após o evento no Rio, a Câmara dos Deputados também realizou uma audiência pública em Brasília, para tratar dos problemas de licenciamento de Belo Monte. As denúncias de que a empresa não cumpriu as exigências do contrato não têm sido suficientes para impedir que o processo de licenciamento continue progredindo. Com a licença de instalação concedida no dia 1º de junho pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a hidrelétrica já pode começar a ser construída, apesar de inúmeros alertas de riscos feitos pela população local e por especialistas.
Problemas de saúde em Santa Cruz
Moradores de Santa Cruz e de outros locais da região lotaram a Alerj para denunciar a atuação da TKCSA na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A audiência foi convocada pela comissão especial criada na Alerj para acompanhar a instalação da empresa. A comissão é presidida pela deputada Lucinha (PSDB), e foi instalada após pressão e denúncia dos movimentos sociais e pesquisadores sobre os impactos do empreendimento. A TKCSA é um investimento da ThyssenKrupp Steel, uma empresa alemã e da companhia Vale, no valor de cerca de U$ 8,2 bilhões. Em 2010, o empreendimento foi multado duas vezes por causar poluição atmosférica. A população local alega, no entanto, que essa poluição é constante e tem agravado problemas respiratórios e causado doenças de pele. Outros problemas narrados pelos moradores são o prejuízo às atividades produtivas típicas do local, como a pesca e a agricultura. Pesquisadores da Fiocruz, também presentes à audiência, afirmaram que têm acompanhado o caso TKCSA e constado um quadro com consequências graves para a população local. “Diante das condições existentes em termos de saturação da bacia atmosférica da região, que já possui outras indústrias no polo industrial de Santa Cruz, da proximidade da população residente e da necessidade de preservação de um ecossistema tão sensível e em pleno processo de degradação e possibilidade de recuperação que é a Baía de Sepetiba (onde se localiza Santa Cruz), a nossa grande conclusão é que tal indústria jamais poderia ser instalada na União Europeia e sob a legislação europeia”, afirmou o pesquisador Marcelo Firpo, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. “Existe uma série de riscos ambientais, deficiências estruturais do sistema de saúde local que precisa ser reforçado, mas acima de tudo, existem impactos à saúde da população que precisam ser mais claramente mensurados. É inadmissível que no Brasil pós-regime militar, em pleno processo de democratização, com tantos ganhos do ponto de vista da inclusão social e da democracia, a população seja obrigada a morar tão próxima dessa indústria de alto risco. E ainda num contexto no qual as informações sobre o conteúdo das substâncias químicas perigosas e seus impactos ao ambiente e à saúde ainda estejam tão pouco claros dentro das instituições oficiais governamentais, que muitas vezes não explicitam com clareza quais os impactos que estão ocorrendo”, acrescentou Firpo.
Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Alexandre Pessoa, a região de Santa Cruz foi escolhida para o empreendimento pelas suas condições históricas de vulnerabilidade socioambiental. “Historicamente, a bacia da Baía de Sepetiba, onde está localizada a TKCSA, foi um território de exceção, onde os direitos sociais foram sistematicamente negligenciados. Empresas transnacionais escolhem exatamente esse espaço de vulnerabilidade para desenvolver os seus empreendimentos altamente poluidores. Existe uma intencionalidade nessa escolha, que parte do pressuposto de que no Brasil e no Estado do Rio de Janeiro, e ainda mais num território com baixo índice de desenvolvimento humano e ocupado por uma comunidade de baixa renda, a população não teria condições de defender os seus direitos”, sustentou o pesquisador durante a audiência. Alexandre destacou que, no entanto, a TKCSA está se surpreendendo. “A comunidade local conhece a violação de direitos que acontece naquele território e isto explica por que este auditório está cheio”, disse.
Laudos médicos feitos pelo Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz) e pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe/Uerj) comprovam que de fato a população de Santa Cruz tem sofrido com a presença da siderúrgica. Seis adultos e uma criança foram atendidos na Fiocruz e no Hupe com queixas de problemas respiratórios como tosse e sinusite. Além disso, de acordo com o laudo da Fiocruz, foi possível encontrar na cabeça da criança uma poeira prateada. “O que se verificou foram eventos sentinelas que demonstram a possibilidade de danos causados pela exposição ambiental, relacionadas ao acidente ocorrido na região ou ao processo de emissão dos poluentes produzidos pela fábrica. Diante deste fato, é necessária uma abordagem epidemiológica por meio de busca ativa de casos, e estudos ecológicos com dados secundários sobre a morbidade e a mortalidade da população exposta, dentre outros”, diz o laudo do médico Hermano de Castro, da ENSP/Fiocruz, que atendeu os moradores de Santa Cruz. Para o especialista, é preciso acompanhar de perto essa população. “Tomando-se em conta a proximidade das habitações e da população no entorno da fábrica e possíveis danos à saúde de curto prazo (efeitos agudos), médio e longo prazos, como câncer (efeitos crônicos), essa população deveria ser colocada sob vigilância ambiental em saúde pelo tempo em que ficar exposta e por pelo menos 20 anos após a retirada da exposição”, recomendou, ao final do laudo.
Inea e TKCSA
O subsecretário do Ambiente do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Luis Firmino, reconheceu que de fato a TKCSA é uma empresa com grande impacto. “É óbvio que uma empresa dessa tem uma série de emissões atmosféricas, lançamentos de efluentes e o impacto sobre o território não é só nos milhões de metros quadrados onde ela está, mas na redondeza também. O que se busca no estudo de impacto é entender essa relação toda e traçar cenários, que são todos hipotéticos, e se baseiam em modelos e em dados de estudos e pesquisas. Mas o licenciamento, com o decorrer do tempo, pode detectar um cenário diferente do que foi proposto e pode e deve exigir adequações necessárias”, disse. O subsecretário afirmou ainda que o EIA-Rima não abrangeu todas as dimensões dos possíveis problemas gerados pela TKCSA. “A discussão que foi feita aqui da exclusão dos pescadores artesanais precisa ser incorporada no estudo de impacto ambiental. Estamos à disposição para incorporar esse contingente da população. Com o píer, com trânsito de navios, acaba-se com a pesca artesanal e isso não é mensurado no estudo de impacto ambiental, por isso eu disse que o estudo trabalha de forma hipotética”, respondeu.
De acordo com Luis Firmino, a TKCSA ainda não passou no teste e por isso não obteve a licença definitiva de funcionamento. Entretanto, segundo ele, o Inea não fecha a empresa porque, com exceção dos episódios críticos de duas emissões de poluentes, em agosto e dezembro de 2010, as emissões cotidianas estão abaixo dos níveis permitidos pelo Conama e dentro dos padrões europeus. “Se tivéssemos certeza de que ela não pode atender esses níveis não estaríamos nem discutindo a permanência da empresa, mas é claramente visível que é possível atingir esses níveis. e então, nossa obrigação é não conceder a licença e forçar a empresa a implantar os sistemas que a levem a cumprir essa situação”, justificou.
Para os moradores, no entanto, o sofrimento não se resumiu aos episódios de agosto e dezembro de 2010. “Vivíamos num paraíso, hoje vivemos com poeira, barulho e muitas famílias sofrendo”, destacou uma moradora. “Hoje os pescadores artesanais estão sem trabalho, outros viraram pintores, pedreiros”, denunciou o advogado da Federação dos Pescadores Artesanais do Estado do Rio (Fapesca), Victor Mucare.
Alexandre Pessoa discorda que o EIA-Rima seja uma ferramenta hipotética. “O EIA-Rima da TKCSA já foi criticado várias vezes e novamente o Inea não defende o estudo porque ele é indefensável. As fragilidades dele estão sendo reveladas. O estudo tem que trabalhar com cenários do que significa a não execução do empreendimento, o que significa a execução, quais as consequências negativas e positivas. Além da lacuna da questão dos impactos à saúde, dos pescadores, há também os impactos das enchentes decorrentes da alteração dos corpos hídricos que não estão mensurados no EIA-Rima da TKCSA e comprometem a saúde, o meio ambiente e até a renda das pessoas”, pontuou.
Cabo de força
Muitas pessoas presentes à audiência chamaram atenção do Inea para que o órgão atenda aos interesses da população de Santa Cruz e não da TKCSA. Os moradores pediram ainda que a próxima audiência pública seja realizada no território onde o empreendimento se localiza, para que mais moradores possam participar. No caso de Belo Monte, o governo não escutou os incessantes pedidos de organizações e movimentos sociais para que novas audiências públicas fossem feitas antes que a licença de instalação da usina fosse concedida.
Diversos pesquisadores de instituições de ensino públicas de todo o país analisaram o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) da UHE Belo Monte e constataram graves deficiências no documento. Os pesquisadores elaboraram o documento “painel de especialistas”, que reúne essas análises. Na parte sobre a saúde, educação e violência, por exemplo, os especialistas identificam “riscos excessivos”. “Pode-se afirmar que não houve prioridade de inserção das questões de saúde. Constata-se um mecanismo de postergação para as questões sobre o tratamento dos efluentes, dos riscos potenciais aos trabalhadores, a comunidade e, consequentemente, para a saúde pública. Vários problemas sociais fazem parte do cenário de impactos da implantação dessa hidrelétrica, o que exige a urgente resposta a questões omissas no EIA. Confirma-se a falta de prioridade para as questões sociais que demandam implementação de políticas públicas e também um foco claro para as questões de saúde. A exclusão dos possíveis impactos à saúde humana e a negação da incomensurabilidade dos valores ambientais demonstram a falta de uma abordagem ecossistêmica para o complexo problema socioambiental”, concluem os pesquisadores Rosa Couto e José Marcos da Silva, respectivamente doutora e especialista em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Contrariando os princípios do Sistema Único de Saúde, os Municípios não estão sendo chamados a refletir estas questões e a se preparar para atender as novas demandas de saúde geradas pelos impactos negativos que são e serão gerados na instalação e na operação da hidrelétrica”, acrescentam.
Na coletiva de imprensa concedida no dia 1º de junho sobre a construção da usina de Belo Monte, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, mostrou a visão do governo sobre o assunto. “Estamos preocupados sim com as questões sociais e urbanas, da qualidade de vida urbana, mas também estamos preocupados que se garanta a construção de negócios locais que sejam capazes de levar aquela população para um patamar de desenvolvimento maior do que hoje existe lá”, declarou. Também participaram da coletiva os ministros Gilberto Carvalho (Secretaria Geral da Presidência da República) e Edison Lobão (Minas e Energia).
Para a deputada estadual Janira Rocha (Psol/RJ), relatora da comissão especial na Alerj sobre a TKCSA, é preciso juntar forças para combater o modelo de desenvolvimento em curso, que gera problemas como os vividos pelas populações do Rio de Janeiro, do Pará e de muitas outras partes do país. “Esses investimentos vêm consolidar um modelo de desenvolvimento econômico. Não é um problema apenas contra uma fábrica ou contra um governo. O que existe no país é um modelo de desenvolvimento econômico que trata os setores sociais que falaram nessa audiência dessa maneira. A TKCSA é parte dos grandes negócios do Estado brasileiro. É mais fácil fazer com que os setores da classe dominante brasileira possam chegar aos recursos econômicos que eles querem utilizando os Estados e os governos para isso”, analisa. Para Janira, os setores contrários a essa proposta de desenvolvimento precisam refletir sobre uma questão. “É possível construir correlação de forças nesse processo para parar não só a TKCSA, mas esse conjunto de empreendimentos que vão triplicar os danos que vocês estão sofrendo? Este é o debate que temos que fazer. Existe hoje um bloco político que defende esse modelo. Estão neste bloco o governo federal, o estadual, parte do judiciário, parte do legislativo, parte da imprensa. E, para construir uma saída para isto, é importante ter um outro bloco, que tenha também parte do legislativo, parte do judiciário, que tenha os pescadores, os moradores, as organizações sociais que realmente estão comprometidas com isso. Porque se não for assim, não será possível”, concluiu.
* Raquel Júnia é da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz.
** Publicado originalmente no site Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.