Arquivo

Onde a guerra Síria atinge os afegãos

Afegãos radicados em Ceylanpinar, pequena cidade da fronteira turca com a Síria. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Afegãos radicados em Ceylanpinar, pequena cidade da fronteira turca com a Síria. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Ceylanpinar, Turquia, 20/9/2013 – As pessoas correm para suas casas ao anoitecer, justamente quando a intensidade dos combates aumenta. Contudo, para Sha Mehmed tudo é dolorosamente familiar. Tinha 11 anos em 1982, quando abandonou sua aldeia natal no Afeganistão para instalar-se nesta pequena cidade turca, na fronteira com a Síria. Mehmed, originário de Baglan, a 200 quilômetros de Cabul, confessa à IPS que todos estão assustados em Ceylanpinar, porque “caíram três bombas muito perto”.

Esta é uma pequena localidade que fica 800 quilômetros a sudeste de Ancara e que atualmente é o local da Turquia mais castigado pela guerra interna na Síria. Na realidade, Ceylanpinar não é mais do que o nome turco para a área norte da cidade curda de Serekaniye. O lado sul, já em solo sírio, se chama Ras al Ayn. Excetuando as distâncias, pode-se dizer que se trata da versão local de Berlim dividida, na época da Guerra Fria, embora aqui o muro seja substituído por uma ferrovia com alambrados dos dois lados.

Foi a famosa linha férrea do Expresso do Oriente, que determinou a fronteira entre Síria e Turquia em 1921. O preço de ligar Berlim a Bagdá passava por dividir famílias curdas e árabes dos dois lados da via. Hoje, viver na fronteira síria implica, ainda, ser vítima de balas e demais projéteis “perdidos” lançados do outro lado. Yadigar Arzupinar contou à IPS que “não tinha mais que três anos” quando chegou a este lugar, por isso “tem lembranças apenas do Afeganistão”.

Seja como for, este artesão do couro conhece perfeitamente as razões da existência desta inesperada comunidade de quase dois mil afegãos em Ceylanpinar. “Kenan Evren (general golpista e presidente da Turquia entre 1980 e 1989) visitou o Afeganistão em 1982. Ao retornar decidiu construir 300 casas para nossas famílias e desde então vivemos aqui”, disse Arzupinar, lembrando que a falta de oportunidades, e sobretudo a guerra a poucos metros de distância, obriga muitos a emigrarem para Istambul e Antalya, a meca do turismo de praia turco, 500 quilômetros a sudoeste de Ancara.

É impossível saber se aqueles que partiram terão saudades deste bairro na entrada norte de Ceylanpinar, uma espécie de barracões cinzas e distribuídos entre ruas retilíneas e sem asfalto. “Que Deus maldiga aqueles que fazem a guerra”, exclama Gulshan, uma mulher de 75 anos natural de Kunduz, 230 quilômetros ao norte de Cabul. “Me diga, é certo a Turquia apoiar a rede Al Qaeda do outro lado da ferrovia?”, pergunta esta idosa de olhos puxados, repassando um boato que circula com força na área há alguns meses.

Verdade, ou não, o certo é que a convivência nesta cidade fronteiriça está visivelmente afetada pela guerra do outro lado da estrada de ferro. Ismail Arslan, prefeito de Ceylanpinar, lamenta “profundamente” a atual conjuntura. “Temos quatro mortos e mais de 40 feridos até agora. As pessoas têm medo de sair à rua e, frequentemente, pedimos para que todos fiquem em suas casas, mas alguns são feridos mesmo dentro delas”, conta este advogado dirigente do Partido Paz e Democracia, o grupo dominante entre os curdos da Turquia.

E o prefeito vai além: “A região está repleta de extremistas islâmicos. A Turquia lhes dá apoio logístico para atravessarem a fronteira e inclusive evacua seus feridos em ambulâncias para hospitais locais”. Arslan afirmou à IPS que seu objetivo é impedir que os curdos da Síria consigam controlar seu território. Desde o começo das revoltas, em março de 2011, os curdos da Síria, que somam entre três e quatro milhões de pessoas, mantêm uma posição neutra, se distanciando tanto de Damasco quanto da oposição, mas enfrentando ambos pelo controle das áreas onde são maioria, no norte do país.

Musa Çeri, governador do distrito turco e membro do governante Partido da Justiça e do Desenvolvimento, reconhece que Ancara não vê com bons olhos que a principal minoria da Síria construa uma região autônoma em sua fronteira, semelhante à do norte do Iraque. Em todo caso, nega terminantemente as acusações do prefeito. “Meu governo nunca seria capaz de tal coisa”, disse à IPS.

Apesar de suas diferenças em um tema tão sensível, tanto Arslan com Çeri concordam que os afegãos locais são uma comunidade tranquila e trabalhadora e, portanto, o resto da população nunca teve queixa alguma contra eles. Não é comum, mas alguns inclusive se casaram com moradores locais. Emirhan Celikale é prova disso. “Meu pai é afegão e minha mãe é curda, mas em casa todos falamos o uzbeque”, explicou o jovem à IPS.

Precisamente, a comunidade afegã em sua totalidade é de etnia uzbeque, terceiro povo majoritário no Afeganistão, após pastunes e tayikos. A origem comum centro-asiática dos idiomas turco e uzbeque faz com que ambos sejam mutuamente inteligíveis, facilitando a integração deste coletivo no país. No entanto, para os habitantes mais idosos, a lembrança de sua terra natal torna as coisas bastante difíceis. Como todos os de sua geração, Abdullah Önder usa enorme barba branca e turbante, em total sintonia com seu “shalwar kamiz”, o conjunto de camisa e calça folgadas hegemônicos em sua região de origem.

Önder recorda que tinha 27 anos quando chegou, “recém-casado”, a Ceylanpinar. “Vivíamos bem na fronteira do Tajiquistão, em uma casa bonita junto a um riacho”, detalhou este homem em seu pequeno estabelecimento de alimentação. “Abandonamos minha aldeia para fugir para Helmand”, 731 quilômetros a sudoeste de Cabul. “De lá cruzamos para o Irã, onde vivemos um ano e meio, para, finalmente, chegarmos aqui”, afirmou. Önder não tem intenção de voltar para sua terra natal. “Morrerei em Ceylanpinar”, garantiu. “Você viu alguma melhora no Afeganistão?”, questionou este homem, antes de fechar sua loja para as orações do anoitecer. Envolverde/IPS