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Haitianos regressam à África com energia solar

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Jean Ronel Noël ajuda um técnico senegalês a soldar um painel fotovoltaico.
attle, Estados Unidos, 10/8/2011 – De uma antiga fortaleza em uma pequena ilha diante do porto de Dakar, o jovem engenheiro haitiano Jean Ronel Noël contemplou o Atlântico sob um portal pelo qual passaram há séculos muitos africanos empurrados para os navios negreiros. “Chegamos, por fim, à porta da viagem sem regresso”, escreveu Noël em seu blog sobre a Île de Gorée, convertida em símbolo dos mercados de escravos africanos. “O sangue me fervia, fiquei de pé. Então, por aqui passaram meus antepassados. A porta do inferno! Duas coisas não têm limites, disse Einstein: o universo e a estupidez humana.”

Noël viajou ao Senegal olhando para o futuro, e não para trás, levando consigo as chaves de uma tecnologia que, acredita, pode abrir as portas de um riquíssimo depósito de energia renovável e, em definitivo, de um modelo de desenvolvimento mais durável e autossuficiente para o Haiti e outros países pobres. Uma empresa do Senegal, especializada em instalações de energia solar, a Kayer, convidou Noël e o técnico Frantz Derosier para visitar esse país do extremo oeste da África ocidental e ensinar aos seus funcionários como fabricar painéis fotovoltaicos, que convertem a luz do Sol em eletricidade.

Noël é cofundador, junto com Alex Georges, da Énergies Renouvelables SA (Energias Renováveis S.A. – Enersa), e Derosier é um de seus 20 empregados. A Enersa fabrica faróis solares e outros equipamentos elétricos, utilizando painéis fotovoltaicos também de produção própria. Já conta com mil luminárias instaladas em ruas de mais de 50 municípios do Haiti. Quando o terremoto de janeiro de 2010 cortou o serviço elétrico em Porto Príncipe, esses faróis foram as únicas fontes de luz em algumas localidades. Esta catástrofe também destruiu grande parte da fábrica da Enersa, mas todos os empregados sobreviveram e a companhia reiniciou a produção em poucos meses.

Nos nove dias que Noël e Derosier estiveram no Senegal, uma ex-colônia francesa como o Haiti, deram treinamento de uma semana para a Kayer na sede de uma confederação de camponeses no povoado de Mekhe, a cem quilômetros de Dakar. O resultado da capacitação foram os primeiros painéis solares “made in Senegal”. A colaboração futura, disse Noël, incluirá concepção e fabricação senegalesa de outros produtos, como iluminação pública.

Esta iniciativa foi possível pelo apoio de uma organização francesa sem fins lucrativos, a Solidarité Internationale pour le Développement et l’Investissement (Solidariedade Internacional para o Desenvolvimento e o Investimento), que proporciona apoio financeiro a instituições de microfinanças em países em desenvolvimento, e também da l’École Polytechinique Féminine (Escola Feminina de Engenharia) de Paris.

De regresso, os haitianos pararam na capital francesa para se encontrar com especialistas em energia solar e estudantes de engenharia dessas organizações, e para testarem dois dos painéis fabricados no Senegal. A viagem foi uma experiência de sucesso da cooperação Sul-Sul, segundo Noël. “O Senegal tem um mercado potencial semelhante ao do Haiti, há muitas comunidades rurais”. A Enersa e a Kayer se associarão para desenvolver projetos no Senegal”, disse à IPS via e-mail.

Embora o haitiano tenha encontrado muitas coisas em comum entre os dois países, diz que os senegaleses têm maior consciência de cidadania. No Senegal, conheceram um empresário haitiano-canadense que também pretende construir painéis fotovoltaicos no país africano. A Enersa tem expectativas de poder desenvolver essa opção, disse Noël.

A viagem à África teve um significado diferente para os dois haitianos. Noël já é um viajante experiente. Após terminar a escola secundária no Haiti, ele e seu amigo Georges foram ao Canadá estudar engenharia e negócios na École Polytechnique de Montréal. Quando se formaram, regressaram ao seu país abrindo uma empresa guiada pela responsabilidade social, que emprega jovens pobres e os transforma em técnicos capazes de produzir algo útil.

Após fazer um curso sobre fabricação de painéis fotovoltaicos, ministrado por Richard Komp, um professor aposentado do Estado norte-americano do Maine, decidiram fabricar equipamentos de energia solar. Para Derosier, o mais jovem dos dois, o voo para Dakar via Paris foi a primeira viagem em avião. Noël contou em seu blog que Derosier manteve uma espantosa calma, mesmo em meio à turbulência que sacudiu o aparelho quando tiveram que atravessar uma tempestade tropical pouco depois da decolagem.

Derosier e a maioria dos empregados da Enersa são moradores de Cité Soleil, o maior bairro de Porto Príncipe, onde um emprego é uma raridade muito apreciada. A Enersa os treinou durante várias semanas em eletrônica e trabalho com metais, e lhes paga um salário muito superior à média do Haiti, onde a maioria dos trabalhadores tenta sobreviver com um ou dois dólares por dia.

Para ambos, a visita ao Senegal foi uma travessia afetiva que lhes permitiu reatar de modo positivo os laços com um continente que exerce profunda influência sobre a consciência de seu povo. Para os africanos sequestrados e transportados como escravos para a então colônia francesa de Saint-Domingue, nos Séculos 17 e 18, Guinée (nome que era dado à África ocidental) representava uma pátria espiritual à qual alguns acreditavam que voltariam depois de mortos, viajando sob o mar.

A Revolução Haitiana derrotou os generais de Napoleão e expulsou os colonos franceses, dando à luz, em 1804, ao primeiro país independente da América Latina e primeiro do mundo criado por escravos africanos rebeldes. Muitos ainda falavam línguas africanas, cujos elementos se amalgamaram com o francês e outros idiomas para criar o créole haitiano, a língua franca e oficial, falada em todo o país.

As religiões africanas sobreviveram no vudu, ainda praticado por muitos. Basta ver as danças e os ritmos dos tambores de uma missa cristã no campo para notar que os haitianos preservaram laços culturais muito estreitos com sua mãe pátria. A peregrinação à fortaleza de Île de Gorée é uma experiência que recomendo a todo cidadão americano com raízes africanas, disse Noël. “Ver a Casa dos Escravos é algo especial, é viajar pela história. Por ali passaram meus antepassados há séculos”, disse. Envolverde/IPS