Histórias das ilhas sem lei

Bancos de fachada, que movimentam fortunas em cubículos. Operações fechadas em caçadas. Repressão a dissidentes. Assim funcionam os paraísos fiscais.

Em 2009, eu encontrei uma ex-alta funcionária de banco, Beth Krall, para explorar a questão que estava me incomodando: como os banqueiros que abrigam os gângsters ricos e políticos corruptos justificam o que fazem? Nós nos conhecemos em um domingo em Washington. Ela tinha deixado o banco privado e se juntado ao setor não governamental. Vestida em um notável casaco branco e preto, ainda parecia muito uma financista internacional estilosa. Com 47 anos e quase 24 anos em negócios bancários, Krall (nome fictício) ainda estava se acertando com seu passado.

O último posto de Krall num paraíso fiscal fora nas Bahamas, um arquipélago com 300 mil habitantes que foi importante “centro offshore” desde a época de ouro do crime organizado norte-americano. Alguns meses antes, um profissional nas Ilhas Cayman avisou-me para ter cuidado com minha segurança pessoal, se eu fosse “fazer todas as perguntas” sobre as Bahamas. Krall disse que não tinha certeza sobre o que aconteceria a ela se voltasse, já que estava quebrando parcialmente o código de silêncio dos banqueiros privados. “Eu não quero que me ponham sapatos de concreto”, ela me disse sem sorrir. Uma das razões para o medo era algo que a irritava desde o princípio: muitas das pessoas com quem tratava eram membros poderosos da sociedade em seus países.

Krall iniciou-se na atividade bancária logo após a universidade, e trabalhou em diversos bancos antes de se mudar para o Cititrust nas Bahamas, onde ela fazia avaliações e contabilidade para os fundos de investimentos.

A partir desse ponto, Krall se recusou a nomear seu empregador. Ela se tornou gerente de relações com clientes com o setor de private banking de uma conhecida instituição nas Bahamas. Eles trabalhavam com o que é eufemisticamente conhecido como “bancos dirigidos” (managed banks), ou “bancos-couraça” (shell banks), uma especialidade dos paraísos ficais. Sua atividade real é desenvolvida longe de sua sede, para que possam escapar da supervisão das autoridades.

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 levaram os Estados Unidos a legislar contra os “bancos-couraça”. Agora, um banco nas Bahamas deve manter lá dois diretores e apresentar seus livros e registros, para operar. “Isto significa que uma instituição, instalada talvez num quarto ou suíte de um prédio, onde trabalham duas pessoas, pode ser considerado um banco agora”, diz Krall. Ela me passou o site de uma companhia com base nas Bahamas onde se podia perceber exatamente isso: a aparência de um banco verdadeiro – incluindo dois diretores e um local para guardar os registros. Tal configuração torna o “banco” quase comum, mas continua a manter as autoridades à margem.

Krall mudou-se para um grande banco europeu, novamente como gerente de relações com clientes – de fato, como alguém que encontra clientes ricos e os mantém felizes. Em busca de negócios, dirigia-se frequentemente para América Latina. “Nos formulários de imigração, você deveria escrever que estava viajando por prazer, enquanto sua bagagem estava cheia de roupas de trabalho e avaliações de portfólio, ou materiais de promoção e apresentações explicando as vantagens de depositar dinheiro nas Bahamas”. O nome do cliente não aparecia no portfólio: na verdade, o banco nem o registraria na conta. Às vezes, era enervante passar pelos aeroportos, mas ela nunca foi questionada.

Apesar do crescimento de suas dúvidas, Krall acabou trabalhando para uma agência de um private bank suíco nas Bahamas. Era um banco comum, e foi o único onde ela realmente viu uma pasta cheia de dinheiro. “Meu banco nunca teve um cliente que entrasse pela porta”, conta ela. “Os gerentes iam, com os clientes, a grandes viagens de caça, ou para o balé em Budapeste. Era onde tudo acontecia.”

Seus colegas eram aclamados por antigos círculos aristocáticos europeus. Enquanto Krall era perfeita em seu trabalho e tinha relações profissionais próximas com os maiores advogados, gerentes e outros, uma lacuna permanecia aberta. “Eles iam a festas com a realeza, com embaixadores”, diz ela. “Eu não estava no círculo”.

Naquele momento, as leis das Bahamas estavam sendo um pouco reforçadas, seguindo uma débil regulação global, e ela foi deslocada no banco, para trabalhar como supervisora. Nessa época, banqueiros que atuavam em paraísos fiscais fizeram uma grande apresentação de suas regras sobre como avaliar clientes, a fim de manter distância do dinheiro “ruim”. Os depositantes teriam que fornecer uma cópia certificada do passaporte, por exemplo, e declarar a origem do dinheiro. As jurisdições como as das Bahamas e das Ilhas Cayman colocaram tais requerimentos em seus estatutos, e os bancos empregaram oficiais de confiança como Krall para reforçar isso. Pelo menos, era a teoria. Mas existem muitas maneiras de contornar essas restrições.

Krall deveria verificar movimentos suspeitos nas contas – e existiam muitos. Ela ergueu muitas bandeiras vermelhas. “Eles (os gerentes) diziam que eram comissões”. Seriam subornos? Comissões sobre o quê? “Eu voltava, e nunca tinha respostas.” Uma empresa da Suíça que tinha uma relação com o banco de Krall não dispunha quase nada em seu website, exceto algumas fotos de uma bonita fonte em Genebra. “As bobagens que eles nos traziam eram inacreditáveis. De forma alguma um administrador deveria aceitar isso. Você não tinha ideia de quem eram os fundadores, que recursos estavam sendo depositados ou de onde vinham. Eu fiz forte objeção, mas o banco os aceitou”.

Há algo nas Ilhas que constrange os dissidentes. Em uma ilha-“aquário”, você não pode se esconder. A capacidade de manter um consenso estabelecido e de sufocar encrenqueiros faz com que uma ilha seja especialmente acolhedora para finanças offshore. Isso garantia aos aos financiadores internacionais que os estabelecimentos locais eram de confiança e não deixariam que políticas democráticas intervissem nos negócios.

John Christensen, antigo conselheiro da Ilha de Jersey, que se tornou um dissidente, conta ter se deparado com atitudes de extrema direita, quando ele voltou à sua Ilha nativa em 1986, após trabalhar no exterior como economista de desenvolvimento. Foi o ano em que se deu o “Big Bang” da desregulação fiscal de Londres, e ele encontrou o paraíso fiscal em crescimento espetacular. Velhas casas, lojas de turistas e mercados na bela capital de Jersey, St. Helier, estavam sendo derrubados e substituídos por bancos, edifícios comerciais, estacionamentos e wine bars. Foi a uma agência de empregos e lhe disseram que poderia encontrar o emprego que quisesse. No dia seguinte, recebeu três ofertas. No trabalho, logo ficou ciente de práticas como reinvoicing, na qual parceiros de uma transação fechavam um preço e registravam oficialmente outro, a fim de transferir secretamente o dinheiro para fora das fronteiras.

Quando a entrada de rios de dinheiro em Jersey tornou-se uma tendência clara, Christensen expressou seu mal-estar sobre as origens dos recursos, em parte provenientes da África, mas suas observações foram desprezadas.

A concentração de atitudes extremistas em Jersey era autorreforçada, como Christensen explica. “A maioria das pessoas de esquerda, como eu, se foi”, disse ele. “Quase todos os meus amigos de escola deixaram Jersey para ir à universidade, e quase nenhum voltou. Eu não posso dizer quão sombrio pareceu.” Ele quase saiu de Jersey, mas o pesquisador acadêmico Mark Hampton, que estava montando um quadro para entender os paraísos fiscais, o convenceu de quanto era importante entender o sistema de dentro. “Eu fui encoberto”, disse Christensen, “não para limpar a barra de indivíduos ou empresas, mas porque não era capaz de entender – assim como nenhum dos acadêmicos com quem conversei podia. Não havia literatura útil para isso”.

Jersey é povoada de redes secretas de elite, tipicamente ligadas ao setor financeiro. Após ser nomeado conselheiro financeiro em 1987, Christensen descobriu que muitas pessoas que o procuravam queriam que ele se juntasse à sua loja maçônica, e o cumprimentavam com o sinal secreto. “A atitude deles é muito parecida com a de uma turma de garotos: ou você é um de nós, ou está contra nós”, continuou ele. “Isto significa que eles podem confiar que você fará a coisa certa sem que digam – um significado traiçoeiro da palavra ‘confiança’.”

Elites não submetidas a controle são sempre irresponsáveis, eu senti o gosto da governança bolorenta de Jersey no primeiro dia de uma visita em março de 2009. O Jersey Evening Post, jornal local, publicou na primeira página uma manchete que dizia “Estados em carnificina”, em referência à Assembleia do Estado, o parlamento de Jersey. “A Assembleia pareceu-se a um pátio de escola ontem, com linguagem suja e insultos pessoais trocados”, dizia o artigo. O senador Stuart Syvret, um político popular, apesar de controverso, queixou-se na Assembleia de que estavam sussurando em seu ouvido.

Syvret, segundo o jornal, levantou-se e disse: “Sinto muito por interromper o ministro. Mas à minha direita, o senador Perchard, está dizendo em minha orelha ‘Você está cheio de merda, por que se merdas, seu bastardo?” O senador Perchard respondeu: “eu nego totalmente. Estou cheio das alegações desse homem”. A BBC, que estava transmitindo a reunião ao vivo, teve que se desculpar pela linguagem.

Syvret tem sido uma vítima regular dos esforços para suprimir os dissidentes. “Qualquer figura contra o establishment aqui está marcada”, diz Syvret. “Há um clima de medo. Qualquer um que se atreva a discordar é contrário a Jersey, um inimigo da ilha. Você é um traidor, desleal. Há toda uma conduta stalinista.” Algumas semanas após a minha visita, oito policiais prenderam Syvret e o mantiveram detido por sete horas, enquanto saqueavam sua casa e arquivos pessoais, incluindo seu computador.

Em outubro de 2009, acusado de vazar um relatório policial sobre a conduta de uma enfermeira, Syvret foi para Londres e pediu asilo na Câmara dos Comuns, dizendo que não teria um julgamento justo em Jersey. Um membro do parlamento britânico, John Hemming, um liberal democrata, abrigou-o em seu apartamento, declarando que “nós não permitiremos que ele seja extraditado, para ser processado em uma corte que não obedece as normas judiciais”. Quando Syvret voltou, em março de 2010, para concorrer às eleições, foi detido no aeroporto. “Esta é uma sociedade sem Estado de direito, governada por uma oligarquia”, disse Syvret. “É um Estado de partido único, e tem sido assim há séculos.”

Na linda costa de Jersey, eu me encontrei com John Heys, um guia turístico do mundialmente famoso Zoológico Durrell, e seu amigo Maurice Merhet, um pintor aposentado e criador de porcos. Os dois tinham se manifestado – em cartas ao Jersey Evening Post e em outros fóruns — e foram classificados, publica e regularmente, como traidores. Os dois descreveram o mesmo clima que Syvret havia pintado: o medo de serem demitidos de um emprego, de nunca chegarem a lugar nenhum, de serem colocados na lista negra.

Heys mostrou-me o e-mail que um ministro enviara como resposta a um dissidente, seu amigo, que apontara, em uma mensagem de Natal atrevida, as enormes quantias depositadas em Jersey, em meio à pobreza mundial. O ministro respondeu: “Olá, traidor, Por favor evite me mandar seu lixo não solicitado… Estou surpreso por você ainda ter decidido viver nessa ilha ‘paraíso fiscal’… Se é tão ruim assim, porque você não parte para viver em outro lugar … Boa viagem, eu diria… Mas talvez não por que você tem uma vida muito boa aqui, sem dúvida talvez financiado por bancos e sua hipoteca… É verdade que minha família vive em Jersey há muitas gerações e eu tenho muito orgulho disso, mas ouvir traidores idiotas como você me deixa furioso. Eu não teria a ousadia de te desejar Feliz Natal, na realidade eu espero que você continue vivendo sua existência miserável em seu mundo de traição”.

Em uma noite em 1996, perto do fim de seu período em Jersey, Christensen abriu os livros para um repórter do Wall Street Journal, que estava investigando uma alegada fraude envolvendo investidores norte-americanos e um banco suíço. A história, intitulada “Risco offshore: Ilha de Jersey já não é um paraíso para os investidores”, foi matéria de capa vários meses depois. A indústria financeira e os políticos de Jersey entraram em espasmo. Essa foi uma das únicas vezes que o setor financeiro da Ilha, supostamente limpo e bem regulamentado, foi contestado em um jornal sério. O final do artigo citava um antigo funcionário público. Todos em Jersey tinham certeza de que era Christensen. Ele sabia que, ao falar com o jornalista, tinha efetivamente se demitido.

As instituições financeiras podem tirar vantagens da insularidade, timidez e miopia moral, mas o ethos do establishment de Jersey deriva, enfim, dos paraísos fiscais e seus controladores – não de alguma idiossincrasia da Ilha. A repressão offshore pode acontecer também em grandes jurisdições. Rudolf Elmer, um banqueiro suíço que trabalhou em bancos em diversos paraísos fiscais antes de denunciar fatos da corrupção que presenciou, sentiu a mesma pressão na Suíça, um país com oito milhões de habitantes.

* Nicholas Shaxson é escritor e jornalista, autor de Treasure Islands: Tax Havens and the Men who Stole the World (Ilhas do Tesouro: Paraísos Fiscais e os Homens que Roubaram o Mundo), ainda sem edição em português. Este texto é um extrato de seu livro.

** Tradução: Daniela Frabasile.

*** Publicado originalmente no site Outras Palavras.