A organização social em que vivemos é produto de um processo histórico. O homem, ao construir o mundo com seu trabalho, exerce uma pressão seletiva no sentido de aumentar a sua liberdade de expressão, o que exige cada vez maior eficácia produtiva. Há uma evolução simultânea, civilizatória e quase biológica, que amplia o altruísmo e a solidariedade social, exatamente porque a cooperação é mais “produtiva” e libera mais tempo para a expressão criativa do homem.
Uma das construções mais impressionantes de Marx é a sua leitura do papel do trabalho nos Manuscritos de 1844, antes dele ter sido seduzido por Ricardo. O trabalho é o processo pelo qual o homem se produz e projeta fora dele as condições de sua existência e a sua capacidade de transformar o mundo.
No atual estágio evolutivo, a sociedade divide-se entre os que têm capital e “empregam” o trabalho em troca de salário, e os que detêm a força de trabalho e só podem utilizá-la “alugando-a” ao capital, em troca de salário. Com as políticas sociais, o Estado do Bem-Estar transformou (transitoriamente!) o sistema salarial alienante de Marx no símbolo da segurança do trabalho. Ele dá, por sua vez, a garantia para o funcionamento das instituições da nossa organização social, particularmente os mercados e a propriedade privada.
Os economistas precisam incorporar, como disse Mauss (Sociologie et Anthropologie, 1950), que o trabalho é o “fato global”. O desemprego involuntário é o impedimento insuperável do cidadão de incorporar-se à sociedade. Por motivos que independem de sua vontade, ele não pode sustentar honestamente a si e sua família. O desemprego involuntário é o “mal social global”! Não importam as filosofias ou as ideologias. No presente estágio evolutivo da organização social que o homem continua procurando para fazer florescer plenamente a sua humanidade, é a natureza e a qualidade do seu trabalho que o coloca na sua posição social e econômica, que afeta sua situação física e emocional e que determina o nível do seu bem-estar.
É com esse sentido do papel do trabalho, com o qual o homem se constrói e produz um mundo onde tenta acomodar-se numa estrutura social conveniente, que devemos entender os protestos dos “indignados com Wall Street”, que se espalham por todo os Estados Unidos. Não se trata de “excluídos” sociais (talvez alguns deles o sejam), mas de cidadãos honestos, educados e que até bem pouco tempo tinham a oportunidade de ganhar a sua vida, sustentar a sua família, educar seus filhos, comprar sua casa, realizar, enfim, o “sonho americano”, com o qual os Estados Unidos venderam o lago azul ao mundo.
É verdade que alguns deles já estão na terceira geração vivendo à custa dos outros, graças à miopia e inércia de um Estado do Bem-Estar distraído, o que faz a força do Tea Party. Mas é verdade, também, que a renda média do norte-americano não cresce desde 1996 e que a distribuição de renda tem piorado. Nada disso, entretanto, acendeu o fogo. O agente eficiente foi o nível de desemprego de quase 10% por tempo longo, e que parece não ter fim. O agente eficiente foi a proteção ao sistema financeiro a cujos responsáveis o governo protegeu de forma abusiva e entregou a execução das hipotecas, à custa de 25 milhões que perderam a âncora social do emprego organizado.
Ocupar Wall Street é menos um protesto contra a economia de mercado e seus problemas, do que o profundo sentimento de injustiça social derivado da incapacidade do governo e do Banco Central, que permitiram, sob seus olhos complacentes, a destruição do emprego e do patrimônio de incautos cidadãos, assaltados livremente por um sistema financeiro desinibido com suas “inovações”.
O efeito final desse movimento será medido nas eleições de novembro de 2012. A resposta imediata de Washington deve ser pequena a não ser, talvez, acender o espírito de urgência do Executivo e estimular a resistência dos republicanos para continuar a expô-lo como “responsável” pela crise. Mas o desconforto é enorme. O presidente Obama referiu-se a ele ligeira e quase temerosamente. O secretário do Tesouro Geithner empurrou a culpa para o sistema financeiro, que “aumentou as tarifas bancárias em resposta aos novos controles de Wall Street e aumentou a já existente irritação popular contra ele”. E o presidente do FED, Bernanke, com aquela figura de Papai Noel arrependido, limitou-se a afirmar que “as pessoas estão descontentes com o estado da economia. Elas reprovam – e não sem razão – o setor financeiro pela situação em que nos encontramos e estão descontentes com a resposta das autoridades”. Que autoridades? Obama, Geithner e Bernanke!
Quando se trata de entender o verdadeiro papel do trabalho, os economistas do “mainstream” saem mal na foto: tratam-no como um “fator de produção”, sujeito às leis da oferta e da procura. Por definição não há desemprego “involuntário”. Como disse um economista que viria a ser nobelista, o desemprego em massa é apenas manifestação de “vagabundagem da classe trabalhadora”.
Na mais recente versão do The Palgrave Dictionary on Economics (2008), não há uma entrada para “trabalho”. Ela é dissolvida e desidratada em “disciplina do trabalho” e “economia do trabalho”, com ênfase no “capital humano”. Trata-se do mesmo artigo da 1ª edição (1987), ao qual se acrescentou o apêndice As Novas Perspectivas da Economia do Trabalho. Tudo muito pobre, técnico, abstrato e sem história, como se a economia de mercado – codinome do atual capitalismo – estivesse escrita no Big-Bang e destinada a nos acompanhar até o fim dos tempos…
* Delfim Netto é economista, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Economia, foi ministro de Estado e deputado federal.
** Publicado originalmente no site EcoD.