Tivemos o dia da mulher, necessário, não para preservar, como o dia da água e o dia da árvore, mas para comemorar avanços e melhorar ainda mais a situação da mulher na nossa sociedade, em analogia com o dia do trabalhador e o dia do negro (da consciência negra). A dificuldade toda está na relação homem-mulher. Há a diferença biológica essencial, que consolidou e multiplicou a espécie, e que prevaleceu de forma absoluta, sem nenhuma interferência da razão, durante todo o longo tempo de “estado de natureza”. Esta diferença biológica compreende a força física maior, que deu ao homem o mando irrestrito, pelo uso desta força bruta, durante aquelas dezenas de milhares de anos de lei da selva.
A história da relação homem-mulher é a história da modificação daquele estado original bruto pela razão, que é atributo também essencial do ser humano. E ainda pelo amor, que vai crescendo ao longo da humanização do nosso ser. Na perspectiva de hoje, parece um absurdo ter perdurado por tanto tempo, mesmo na fase de Civilização, aquela dominação masculina que vinha das eras pré-históricas, colocando a mulher numa condição de semiescravidão, com um tratamento mais delicado em algumas culturas, mas sempre de submissão inequívoca. Só no Século 20, depois de cem séculos de História, esta condição começou a se modificar substancialmente, fruto do uso da razão iluminista e dos ideais da Democracia. Não houve confrontos físicos nessa luta civilizatória, como houve nas conquistas dos trabalhadores e dos negros. E modificou-se, efetivamente, essa relação, eu vi: hoje a mulher tem reconhecimento social e exercita formas de cidadania que eram impensáveis, por exemplo, na década de 30 dos mil e novecentos, quando eu nasci. Fruto da razão, sim, e do amor, não do confronto, repito porque é importante.
Foram incalculáveis os avanços, a mulher ocupa hoje a presidência do nosso país, e, entretanto, há consenso de que ainda faltam etapas decisivas a avançar. A pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, publicada recentemente, repetindo outra feita em 2001, e acrescentando nesta última a opinião dos homens sobre a relação entre os gêneros, joga uma luz forte nesta evolução ocorrida dentro do Brasil. Interessantíssima. Pena que não disponhamos de respostas colhidas há meio século, por exemplo. Seria espantosa a modificação.
À luz da razão filosófica, da razão histórica e política, e da razão científica, esta modificação vem sendo extremamente positiva, constituindo mesmo a revolução social e humanística mais importante dos últimos cem anos. Pois no início deste novo século, as mulheres brasileiras sentiram com indiscutível nitidez essa melhoria, muito mais que os homens, segundo a pesquisa referida, numa proporção de ¾ delas para metade deles. Sentimento que se traduziu no índice de satisfação em ser mulher, que pulou de 58% para 68% nos últimos dez anos. O fato deste sentimento estar ainda longe de abranger a totalidade mostra a extensão do caminho a percorrer.
Neste caminho percorrido, a pesquisa mostra assimetrias entre os resultados obtidos nas relações externas: melhores no campo dos direitos e do mercado de trabalho, e ainda bem insuficientes no campo da violência contra a mulher, este resquício vergonhoso dos tempos bárbaros, indicando uma prioridade clara para as políticas humanísticas.
O machismo, em geral, obviamente ainda se manifesta. Entretanto, o ranço parece ser mais resistente entre as próprias mulheres do que entre os machos, segundo revelam as respostas às questões relativas às decisões de casa, à maior experiência sexual e às punições aplicadas à traição. Talvez seja um viés meu, decorrente da observação do comportamento político das mulheres, mas, ainda que paradoxal à primeira vista, não é absurdo concluir pelo machismo maior das mulheres, tendo em vista a eternidade do tempo a que estiveram duramente submetidas a esse preconceito. Tanto a pesquisa como este meu sentimento se aplicam somente à mulher brasileira, mas não creio que, no Ocidente, haja ainda grandes diferenças no comportamento feminino-masculino.
A extensão deste artigo não condiz com a riqueza da pesquisa, e pelotões de perguntas relevantes têm que ser saltados para que eu possa me deter na questão propriamente sexual, que corresponde ao âmbito mais interno das relações e, a meu ver, é o ponto crucial de cotejo entre o fator biológico e o cultural. Precisamente por ser uma dimensão do comportamento humano onde a força da biologia é maior e na qual a imposição cultural foi mais veemente e rigorosa. As respostas da mulher no tocante à satisfação no amor e à satisfação sexual evoluíram no período entre as pesquisas, mas bem menos do que seria de se esperar em face da enorme ampliação da liberdade que a nossa cultura lhes concedeu nas últimas décadas. Só este aspecto mereceria comentários e observações que ultrapassariam a extensão deste artigo.
Fica o convite que a leitura da pesquisa nos faz, para aprofundar esta e tantas outras discussões que confrontam o biológico e o cultural na relação homem-mulher. Reflexões compreendendo, por exemplo, a passividade do óvulo e a porfia nervosa dos espermatozóides; a receptividade da mulher e a intrusão do homem; a serenidade feminina na gestação e na maternidade e a inquietude masculina no esparzimento da semente; as forças irresistíveis da biologia e a mediação da cultura, da razão, do amor e da transcendência. Oh, que chamamento. Dá para discutir e escrever um livro.
* Roberto Saturnino Braga é colunista da Plurale, colaborando com um artigo por mês. Ex-senador, com experiência pública de toda a vida, coordenador da ONG Instituto Solidariedade Brasil, autor de vários livros, o mais recente “No Curso das Ideias”, Editora Publisher Brasil.
** Publicado originalmente pela Plurale.