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Homofobia na ordem do dia em Uganda

Os homossexuais das zonas rurais de Uganda não têm acesso nem a camisinhas nem a lubrificantes. Foto: Mercedes Sayagues/IPS
Os homossexuais das zonas rurais de Uganda não têm acesso nem a camisinhas nem a lubrificantes. Foto: Mercedes Sayagues/IPS

 

Kampala, Uganda, 23/1/2014 – O presidente de Uganda, Yoweri Muyseveni, se negou a assinar um controvertido projeto de lei que condena à prisão perpétua pessoas sentenciadas por cometerem “atos homossexuais”. Mesmo assim, a discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) continua se agravando neste país do leste da África.

“As pessoas pensam que o projeto já é lei”, disse Judith, que pediu para não publicar seu sobrenome. “Aprovando ou não o projeto, estamos sofrendo”, afirmou. A jovem, de 25 anos, tem HIV (vírus causador da aids) e é um homem preso no corpo de uma mulher que recorreu ao trabalho sexual para sobreviver depois que seus pais suspeitaram de sua condição sexual, quando tinha 16 anos, e a expulsaram de casa.

Para ela, a rejeição já começou. Por exemplo, foi discriminada no começo deste mês na clínica que visita regularmente em Kampala. Judith foi diagnosticada com HIV positiva em 2008 e tem um sistema imunológico perigosamente fraco, além de gonorreia. A médica que a atendeu lhe disse que outros pacientes estavam se queixando de que a clínica tratava uma pessoa “gay”.

“Não volte”, ela me disse. “Os pacientes se queixam de que estamos trabalhando com homossexuais”, contou Judith à IPS, acrescentando que “em nossa cultura não é permitido. E sou cristã. Me senti muito mal e quase chorei, mas estou a costumada a isso. Fiquei sem palavras e fui embora imediatamente”. Segundo a jovem, a maioria dos ugandenses não entende a ideia de ser transgênero. “Aqui as pessoas nada sabem sobre assuntos transexuais. Sabem apenas que existem gays e lésbicas”, afirmou.

A maneira como Judith foi tratada “não surpreende”, disse à IPS Enrique Restoy, alto assessor para direitos humanos da Aliança Internacional contra o HIV/aids. “Já há anos que em Uganda recebemos informes sobre serviços de atenção de HIV negado a homens que mantêm sexo com homens e a pessoas transgênero”, afirmou.

Apesar do veto do presidente, a aprovação no parlamento, no dia 20 de dezembro, do draconiano projeto de lei enviou “um sinal devastador a todos os cidadãos de que está certo discriminar e estigmatizar as pessoas com base em sua orientação sexual e identidade de gênero”, destacou Restoy. “O projeto vem corroendo os direitos humanos das pessoas LGBT e afastando-as dos serviços essenciais de HIV, inclusive desde que foi apresentado no parlamento, em 2009”, acrescentou.

Para Restoy, a legislação infringe convenções de direitos humanos e compromissos políticos sobre a resposta ao HIV assinados por Uganda. Na Declaração Política das Nações Unidas sobre HIV/aids, todos os Estados membros se comprometeram a aprovar leis para proteger populações vulneráveis a esse vírus. Porém, nos últimos anos, Uganda, Nigéria e Malawi propuseram ou aprovaram leis homofóbicas.

Em um comunicado, a Aliança disse que o projeto teria “um impacto desastroso sobre a resposta ao HIV”. A ONU, a União Europeia e os Estados Unidos também o criticaram. O projeto de lei condena à prisão perpétua todos os sentenciados por “homossexualidade agravada”, o que inclui atos homossexuais com crianças ou com qualquer pessoa que seja HIV positivo.

Segundo um informe, o projeto também converteu em crime “promover” a homossexualidade, o que poderia incluir oferecer assessoria sobre HIV a gays. Isto poderia afetar organizações locais, apoiadas pela Aliança e por outros doadores, que proporcionam prevenção contra o vírus e aconselham pessoas gays.

É difícil ter acesso a estatísticas sobre homens gays e HIV, mas, segundo uma pesquisa financiada pelo Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da Aids, os 455 homens que mantêm sexo com homens em Kampala correm um “risco substancialmente maior” de contrair o HIV do que o resto da população masculina adulta em geral.

Estudo divulgado em 2009 pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Makerere sobre homens gays em Kampala concluiu que a prevalência de suas infecções com HIV era quase o dobro, 13%, do que a média nacional, que é de 7%. Sam Okuonzi, médico e parlamentar, considera que a homossexualidade é uma “anomalia”, mas diz que só se deveria punir os que “a promovem, incentivam e glorificam”. Ele é categórico ao dizer que o projeto de lei não impedirá que os homossexuais HIV positivos usem os serviços de saúde.

“Qualquer disposição proibitiva a esse efeito deve ter sido eliminada ou será”, assegurou à IPS. “Isto deveria habilitar todos os pacientes com HIV/aids a terem acesso a tratamento médico sem medo de serem levados à justiça”, acrescentou. Okuonzi disse que os pontos de vista de seus eleitores no condado de Vura, distrito de Arua, no norte do país, são “mais extremos” do que os seus.

Durante recente viagem a Soroti, no leste de Uganda, Judith viu que as pessoas LGBT nas áreas rurais enfrentam uma verdadeira batalha na hora de ter acesso a serviços de saúde, além de suportar discriminação. “Não têm camisinhas, não têm lubrificantes, são colocados para fora de suas casas”, contou. Apesar de sentir que não é bem-vinda, Judith acredita que a médica que a atendeu em Kampala não é homofóbica. “Há pressão por parte de outras pessoas. Ela quer manter seu emprego. Esse projeto de lei nos afetou muito”, resumiu a jovem. Envolverde/IPS