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Sana’a, Iêmen, 2/4/2013 – O Iêmen decide seu futuro mediante um processo de consultas políticas e sociais denominado Diálogo Nacional, que durará seis meses e no qual se tentará adotar uma nova Constituição. Porém, o primeiro passo será julgar as violações aos direitos humanos cometidas nos últimos anos. O debate acontece em uma conferência que começou no dia 18 de março na capital, da qual participam mais de 500 representantes de grupos políticos e sociais.
O Diálogo Nacional pretende unificar uma nação fraturada desde a renúncia, no ano passado, do presidente Alí Abdalá Saleh. Um dos desafios para conseguir isso é julgar os abusos cometidos durante seu governo. A violenta morte de Nasser Asbahi é uma das centenas de casos que veem à luz durante o processo. Na manhã de 18 de setembro de 2011, Asbahi, de 34 anos, pai de três filhos, deixou mais cedo o trabalho na construção para participar de protestos em Sana’a contra o regime de Saleh, que ficou por três décadas no poder.
“Nesse dia, Nasser estava na última fila da marcha, de mãos dadas com um idoso”, recordou sua irmã mais velha, Fikriah. “Mas quando ouviu os tiros, disse ao velho que se protegesse, e correu para resgatar as pessoas que estavam à frente” da manifestação. Nasser recebeu quatro tiros das forças de segurança do governo, um na cabeça, dois no peito e outro no estômago.
Abdalá Al Alafi, de 17 anos, também esteve no incidente. Contou que, quando agonizava, Nasser lhe disse para abandonar o lugar. “Creio que é muito tarde para mim”, lhe disse. As forças do governo mataram Al Alafi nos distúrbios do dia seguinte. Calcula-se que mais de duas mil pessoas morreram e outras 22 mil ficaram feridas durante os protestos contra o regime entre 2011 e 2012.
A renúncia de Saleh em fevereiro de 2012, em troca de imunidade concedida pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), com apoio dos Estados Unidos, preparou o caminho para a instauração do Diálogo Nacional e a chegada à Presidência de Abdurabu Hadi. Contudo, há indignação pública pelo acordo obtido por Saleh, que lhe permite manter sua residência em Sana’a, suas grandes riquezas e sua liderança no histórico motor da política iemenita, o partido Congresso Geral do Povo. Hadi é vice-presidente dessa força política.
“O acordo de imunidade é um acerto político do CCG”, disse a ministra de Direitos Humanos, Hooria Mashhour. Entretanto, não é reconhecido em nível internacional. O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) não o reconhece, “e inclusive o assessor especial da ONU no Iêmen, Jamal Benomar, ao ser entrevistado na televisão disse que não é legal”, admitiu Mashhour.
Fikriah, a irmã de Nasser, é insistente em suas demandas. “Queremos justiça”, afirmou. “Não buscamos vingança, mas justiça. Saleh é milionário graças ao nosso dinheiro, está nos matando e nem mesmo podemos interrogá-lo. Quando pudermos questioná-lo de igual para igual, nesse dia sentiremos algo de justiça”, acrescentou. Entretanto, Aziz Alsurmi, cofundador do Centro do Iêmen para a Justiça Transicional, explicou que será necessário um longo processo.
“Primeiro, temos que constatar os fatos. Em seguida, encontrar os que possivelmente cometeram esses atos e estabelecer se podem ser levados a um tribunal. E depois devem pedir desculpas. Essas violações dos direitos humanos devem ser esclarecidas”, afirmou Alsurmi. E acrescentou que o processo deve estabelecer os termos para eventuais acordos de imunidade e para conceder reparações às vítimas, bem como os períodos que serão investigados.
Alguns iemenitas pedem que se investigue a partir do final do domínio britânico em 1967, mas outros sugerem que seja desde o começo do governo de Saleh no que então era conhecido como Iêmen do Norte, em 1978, e outros, ainda, desde a unificação do país, em 1990. Seguramente “deixaremos algumas pessoas insatisfeitas se escolhermos um período determinado”, observou Alsurmi.
Um informe fortemente crítico do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos levou o governo iemenita a decretar, no dia 22 de setembro de 2012, a criação de uma comissão especial para investigar as violações dos direitos humanos cometidas em 2011. Sete meses depois, esta ainda não está formada. Posteriormente foi apresentado o projeto da Lei de Justiça Transicional e Reconciliação Nacional, que o escritório do novo presidente rebatizou como Lei de Reconciliação Nacional e Justiça Transicional.
O texto continua parado no parlamento. A sutil mudança de nome não passou despercebida. “O nome mudou, o que é significativo”, disse Anne Massagee, do Centro Internacional para Justiça Transicional. “Entende-se que as pessoas estejam descontentes porque é proposta uma reconciliação antes de haver um processo para fazer justiça”, afirmou.
Com ela concordou Alsurmi. “A lei “procurará dar maior imunidade, mas já temos imunidade”, disse. Além disso, “está limitada a 2011 e coloca primeiro a reconciliação, o que significa que antes haverá um pedido de desculpas para as vítimas e reparações, e, talvez, depois justiça”, afirmou. “Mas não haverá pedido de desculpas por parte dos responsáveis. Não veremos Saleh dizendo à população que lamenta”, ressaltou.
Agora a pressão é sobre a comissão de justiça transicional do Diálogo Nacional, cuja criação foi anunciada na semana passada e que terá a tarefa de estudar os alcances e as ramificações de um projeto de lei que possa ser efetivamente aprovado no parlamento. A conferência do Diálogo Nacional tem 565 representantes, sendo 112 do Congresso Geral do Povo.
Os grupos independentes de jovens, mulheres e da sociedade civil em geral, que lideraram os protestos contra Saleh, têm 40 cadeiras cada um. Partidos de oposição e outros grupos ocupam os demais assentos. Além disso, o Diálogo Nacional exige uma cota de 30% de representação feminina e de 20% de presença juvenil em cada uma das forças políticas.
Baraa Shiban, que foi designado pelo bloco de grupos jovens, tem como principal objetivo no processo que se faça justiça pelas violações dos direitos humanos. “Temos que ter o cuidado de quando aprovarmos uma lei não parecer que se deseja dar imunidade a essas pessoas, mas sim que se pretende olhar para o futuro”, afirmou.
A ministra Mashhour, por sua vez, disse que “se não for aprovada a lei, os problemas persistirão no país. A vingança se propaga. Se as pessoas não recebem justiça, a farão pelas próprias mãos. Não queremos esse cenário sangrento. Queremos justiça para todos”. Envolverde/IPS