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Indígenas dos Estados Unidos cicatrizam estragos de integração forçada

Uma cerimônia anual em homenagem à antiga aldeia de pescadores de Neerchokikoo. Foto: Cortesia do Naya Family Centre
Uma cerimônia anual em homenagem à antiga aldeia de pescadores de Neerchokikoo. Foto: Cortesia do Naya Family Centre

 

Portland, Estados Unidos, 6/5/2014 – Em sua infância Russell Jim, agora com 78 anos e ancião da tribo yakama, foi colocado à força em um internato do Estado de Washington e apanhou muito por falar seu idioma. Quando voltou para casa ao fim do ano escolar, sua tia se comprometeu a protegê-lo, mesmo que isso significasse “me levar aos morros”, contou à IPS. Seu pai o levou à escola local, integrada totalmente por pessoas brancas, e ameaçou com um processo se não matriculassem seu filho.

Jim conservou seu idioma, mas é muito consciente da forma como as comunidades originárias dos Estados Unidos foram desmembradas pelo deslocamento, devido à política oficial de impor a integração dos indígenas ao resto da sociedade. “Quando peço às pessoas que pertencem a uma tribo que definam a pobreza, em geral a indicam como ‘carecer de uma cultura’. Não a definem pelo dinheiro”, afirmou Janeen Comenote, diretora da Coalizão Nacional Urbana de Famílias Indígenas (NUIFC).

O ancião do povo yakama, Russell Jim. Foto: Jason E. Kaplan/IPS
O ancião do povo yakama, Russell Jim. Foto: Jason E. Kaplan/IPS

É uma distinção importante, em um grupo demográfico com uma das maiores taxas de desigualdade nos Estados Unidos, assegurou Comenote à IPS. A sensação é que isso muda quando as pessoas abandonam as reservas indígenas. “A disparidade é a disparidade e as duas partes a enfrentam”, acrescentou com relação às populações tribais urbanas e rurais.

Um informe da NUIFC mostra que 20% dos indígenas urbanos vivem na pobreza econômica. Além disso, em comparação com a população geral, sofrem uma taxa 38% mais alta de morte acidental, 54% mais de casque o resto da população.

Matt Morton, diretor-executivo do Centro de Jovens e Famílias Indígenas dos Estados Unidos (Naya) na cidade de Portland, capital do Oregon, disse à IPS que mais de 20% das crianças indígenas vivem em lares substitutos no condado de Multnomah. “Nossas famílias experimentam taxas de substituição (parental) muito mais altas do que as famílias brancas em situações semelhantes. Sabemos que isso se deve aos preconceitos e às expectativas de como devem agir os indígenas norte-americanos quando vivem em condições severas de pobreza”, explicou.

A seu ver, “isto não está mudando” após a aprovação, em 1978, da lei de Bem-Estar da Criança Indígena. Antes de entrar em vigor, a taxa chegava a 25%. Como vivem os povos indígenas na pobreza? Segundo a NUIFC, a população tribal tem 1,8 vez mais probabilidade do que a população geral de viver sem saneamento, duas vezes mais de não ter fogão, três vezes mais de carecer de telefone e três vezes mais de viver na rua.

Nas reservas indígenas, as famílias chegam a ser grandes e estendidas. A pescadora yakama Carolina Looney Hunt, de 54 anos, disse à IPS que sua mãe adotava meninos e meninas de maneira informal, embora já tivesse 11 filhos. “Minha mãe dizia para ter cuidado com o Homem Branco. Qual?, eu perguntava. E ela respondia: o DSHS (Departamento de Serviços Sociais e Sanitários), ele rouba seus filhos”, contou.

Os jovens “tentavam voltar para suas famílias ao completarem 18 anos. Mas depois de estarem afastados de sua cultura, vendo como vivíamos, não queriam ficar. Nossa cultura não trata de coisas materiais, mas da família”, explicou Looney. Atualmente a lei estabelece que as crianças indígenas que vivem em lares substitutos devem ser mantidas dentro de sua comunidade, mas às vezes isso não acontece porque não estão inscritos na tribo.

As famílias que sofrem alcoolismo em certas ocasiões se esquecem de inscrever seus filhos. “Me disseram que as crianças que não estão inscritas são registradas como se fossem brancas”, afirmou Looney, que teve de interceder quando sua neta foi colocada em um lar substituto fora de sua comunidade.

Jim afirmou que o álcool fez estragos entre os yakamas, mas também afetou a saúde da tribo a perda de seus locais de caça tradicionais e de reunião pela construção de represas hidrelétricas e da central nuclear de Hanford, no Estado de Washington. “Não estamos adaptados geneticamente aos alimentos ou ao álcool dos colonos”, afirmou. Ele pensa que por isso o diabetes e o alcoolismo afetam seus habitantes.

Enquanto membros da reserva como Jim e Looney trabalham para preservar suas tradicionais culturas, organizações tribais urbanas como o Naya se concentram na reimplantação de sistemas de valores culturais. Morton acredita que a recuperação da dieta tradicional será um “ponto de inflexão” para as comunidades indígenas do noroeste da costa do Pacífico dos Estados Unidos, tanto urbanas quanto rurais. Além disso, a organização pretende restaurar terras cedidas à força aos colonos europeus no norte de Portland.

A última pessoa indígena foi retirada em 1906 da aldeia de pescadores de Neerchokikoo, que se transformou em uma zona industrial. O centro Naya, localizado na área, trabalha com a organização Verde para converter um antigo lixão em um parque do bairro Cully Park. “O que fazemos é criar áreas habitáveis e recuperar conexões culturais por meio da restauração de espaços naturais, da reintrodução de plantas autóctones e da criação de áreas abertas para que nossa comunidade possa se reunir”, disse Morton.

Integrantes da comunidade Naya em Portland, Estado do Oregon. Foto: Cortesia do Naya Family Centre
Integrantes da comunidade Naya em Portland, Estado do Oregon. Foto: Cortesia do Naya Family Centre

 

O Naya utiliza o “modelo da cosmovisão relacional”, criado pela Associação de Bem-Estar Infantil Indígena (Nicwa). A cosmovisão linear eurocêntrica tem sua “raiz na lógica que diz que a causa vem primeiro que o efeito”, diz o site da Nicwa. Pelo contrário, “a visão do mundo relacional vê a vida como uma relação harmoniosa onde a saúde é conseguida ao se manter o equilíbrio entre os diversos fatores que se inter-relacionam com o círculo da vida”, acrescenta.

“Constatou-se uma diferença entre as instituições eurocêntricas e as tribais. As eurocêntricas perguntam se você tem dinheiro suficiente, enquanto as tribais perguntam se a criança tem uma cultura. E também como se ajudam uns aos outros”, destacou Comenote. No período de reassentamento federal das décadas de 1950 e 1960, muitos moradores tribais foram expulsos de suas reservas e forçados a mudar para as cidades, o que gerou uma diáspora de indígenas norte-americanos. “Havia muitos lugares de reassentamento em todo o país e Portland foi mais um”, explicou Morton.

O movimento indígena lutou nas décadas de 1960 e 1970 para reverter essa política, mas muitas tribos perderam o reconhecimento federal e o Estado soberano, segundo a NUIFC. Indígenas reassentados também se casaram com outros grupos étnicos depois de sua expulsão. Além disso, os moradores tribais também se trasladaram para as cidades em busca de oportunidades que não existiam nas reservas.

As organizações tribais urbanas funcionam como “embaixadas tribais múltiplas”, segundo Comenote. Os membros do Naya provêm de 380 tribos diferentes. Portland tem uma nova população indígena urbana dos Estados Unidos. “O Naya está criando uma comunidade intergeracional que se chamará Gerações, em sociedade com o município de Portland e o sistema de escolas públicas local”, explicou à IPS o diretor de desenvolvimento estratégico e comunicações da organização, Oscar Arana.

O projeto construirá moradias econômicas para as famílias que desejarem ser lares substitutos e para os anciãos que quiserem formar parte da comunidade e oferecer seu tempo de maneira voluntária para apoiar seus integrantes. “Há muitos resultados positivos quando três gerações se unem para se apoiarem, como na melhoria da saúde, da educação e no sentido de ter propósito e significado. O projeto obteve o apoio entusiasta do governador John Kitzhaber”, afirmou Arana.

Apenas 40% dos jovens indígenas terminam o ensino secundário em Portland. “Primeiro vamos assegurar a segurança das crianças, então poderemos ajudar os pais a conseguirem moradias e apoiá-los com a educação”, destacou Morton. Envolverde/IPS