Arquivo

A infância se perde entre cadáveres na Síria

Ali Jalil e seu filho Diar, na Associação para os Mártires de Serekaniye, na zona curda da Síria, junto a dois caixões que acabam de ser preparados para mortos em combates com os extremistas jihadistas do Estado Islâmico. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Ali Jalil e seu filho Diar, na Associação para os Mártires de Serekaniye, na zona curda da Síria, junto a dois caixões que acabam de ser preparados para mortos em combates com os extremistas jihadistas do Estado Islâmico. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Serekaniye, Síria, 28/10/2014 – As paredes da Associação para os Mártires de Serekaniye estão repletas de fotos dos mortos pela guerra desta localidade no norte da Síria. Ali Jalil os conhece bem, pois enterrou todos com a ajuda de Diar, seu filho de 13 anos. Neste prédio a oeste da cidade de Serekaniye, 680 quilômetros a nordeste de Damasco, Jalil convida a IPS a conhecer algumas das histórias dos retratos.

Ele começa pela de seu irmão Abid. “Sonhava ser jornalista, até que matou um franco-atirador, em novembro de 2012. Foi o primeiro que enterrei e assim o fiz com os demais desde então”, recorda este antigo comerciante, de 39 anos. “Estes três chegaram completamente carbonizados; este teve a cabeça cortada, como esses dois…”, continua Jalil em seu relato enquanto aponta um a um com o dedo os protagonistas de cada história, entre mais de uma centena de fotos que se perdem de vista.

Foi precisamente a morte de seu irmão que levou Jalil a criar uma associação de apoio às famílias dos mortos em combate, que gerencia junto com outros dez voluntários. “Além de preparar os funerais, tentamos ajudar as famílias com dinheiro, cestas de alimentos ou mantas para o inverno”, detalhou, acrescentando que a ajuda chega do governo provisório curdo da Síria.

Após o começo da guerra civil na Síria, em março de 2011, os curdos optaram por uma neutralidade que os levava a combater tanto com o governo de Bashar al Assad quanto com a oposição. Atualmente, controlam três enclaves ao norte do país: Afrin, Yazira e Kobani, este último mais conhecido, devido ao brutal cerco a que se vê submetido há mais de um mês por parte do extremista Estado Islâmico (EI).

Redur Xelil, porta-voz das Unidades de Proteção Popular (YPG), a milícia que defende o território, disse à IPS que a frente de Serekaniye (nome curdo da cidade também conhecida como Ras al Ayn) é a mais sangrenta para os curdos da Síria, depois da de Kobani.

Mahmud Rashid é outro voluntário da associação. Tem duas irmãs e nove irmãos, “todos combatendo, inclusive um de 60 anos”, contou, acrescentando que um deles, Brahim, caiu em mãos do EI há cinco meses e desde então não se tem notícia dele. “Sua mulher se aproximou da associação há quatro dias para receber ajuda: roupa para as crianças, cobertas e dez mil libras sírias (US$ 61)”, disse Rashid, de 37 anos.

A conversa é interrompida pela chegada de um caminhão com os dois últimos caixões adquiridos. Após descarregá-los, Jalil e seu filho se apressam em envolvê-los no tecido vermelho habitual, ao qual acrescentam a insígnia amarela das YPG junto com uma coroa de flores de plástico. Trabalham com a precisão ganha em uma rotina tantas vezes repetida há dois anos. Demoram apenas dez minutos. Envolver os cadáveres nas mortalhas é muito mais trabalhoso, disse Jalil.

“Diar me ajuda em tudo e faz o que é preciso sem protestar”, explicou o voluntário, enquanto posa orgulhoso sua mão sobre os ombros de seu filho. Jalil tem outro menino, Rojdar, de 11 anos, mas que não pode acompanhá-los porque sofre de hepatite crônica e não sai de casa.

Funeral na localidade síria de Serekaniye, por vários dos mortos curdos em combate contra o grupo extremista Estado Islâmico. Foto: Qadir Agid/IPS
Funeral na localidade síria de Serekaniye, por vários dos mortos curdos em combate contra o grupo extremista Estado Islâmico. Foto: Qadir Agid/IPS

 

Em um informe deste ano, a organização Save the Children alerta para a grave deterioração das condições sanitárias na Síria. E afirma que 60% das instalações hospitalares do país estão destruídas, enquanto a produção de medicamentos caiu 70%. A isso acrescente-se a fuga de metade de seus profissionais de medicina. Dos 2.500 que havia em uma cidade como Alepo, por exemplo, restam apenas 36, afirma a organização, com representação em 120 países. Esta organização pediu uma “ação urgente” para que a população infantil receba as vacinas básicas.

Segundo dados divulgados no dia 16 deste mês pelo alto comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Ra’ad Al Husein, os mortos pela guerra síria já passam de 200 mil. Do total de vítimas documentadas, cerca de nove mil são crianças, e 2.200 de menos de dez anos.

Não é fácil arrancar uma palavra de Diar. “Por que não quer falar agora? Diga o quanto gostava de seu tio; conte que passavam o dia juntos no cibercafé”, insistiu o pai. Sem levantar o olhar do chão, Diar admite não que tem muito mais a fazer do que ajudar seu pai. “A maioria das outras crianças foi embora da cidade e os que ficaram não se atrevem a sair de casa para brincar, por causa dos combates”, disse o garoto.

Para os que partiram a realidade tampouco é muito mais leve. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em um informe de março sobre o impacto da guerra síria sobre meninos e meninas, 5,5 milhões deles foram diretamente afetados pelo conflito. Um em cada dez menores se converteu em refugiado em um dos países vizinhos desde o começo da guerra, e cerca de oito mil deles cruzaram a fronteira sem seus pais.

A isso se soma o impacto psicológico. “Muitas crianças na Síria permanecem em um estado anímico de pura sobrevivência. Viram as coisas mais terríveis e se esqueceram das respostas emocionais mais básicas”, afirma no documento a especialista em proteção da infância Jane Mc Phail.

“Conte ao jornalista o que você dizia nos dias em que caíam mais bombas: que jogue todas as que quiserem que não partiremos”, insistiu Jalil com seu filho, sem êxito, enquanto o menino se concentrava em colocar as flores sobre o segundo caixão. Diar assegurou que se unirá às fileiras das YPG quando completar 18 anos. Ainda tem cinco anos pela frente e pode ser que a guerra na Síria já tenha acabado então. Mas para ele não importa. “Serei igualmente soldado”, afirmou, sem levantar o olhar do chão. Até então, ajudará seu pai, disse com determinação. Envolverde/IPS