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Iraque à beira do abismo

Mais de 200 mil iraquianos fugiram de suas casas desde 3 de agosto, na medida em que a violência dos grupos armados se intensificava, o que elevou o total de refugiados no Iraque para 1,2 milhão de pessoas. Foto: Mustafa Khayat/CC-BY-ND-2.0
Mais de 200 mil iraquianos fugiram de suas casas desde 3 de agosto, na medida em que a violência dos grupos armados se intensificava, o que elevou o total de refugiados no Iraque para 1,2 milhão de pessoas. Foto: Mustafa Khayat/CC-BY-ND-2.0

 

Nova York, Estados Unidos, 5/9/2014 – Os eventos catastróficos que acontecem diariamente no Iraque são mais significativos do que em qualquer momento da história recente. O Estado Islâmico, antes conhecido como Estado Islâmico do Iraque e o Levante (Isis), se expandiu de forma avassaladora da Síria para o Iraque e parecia impossível de ser contido em sua marcha rumo a Bagdá.

As forças armadas iraquianas, que eram muito superiores em quantidade de homens e em armas, não puderam ou não quiseram enfrentar esta decidida força de aproximadamente mil combatentes. Ao mesmo tempo, o mundo fixou sua atenção na minoria yazidi que teve que fugir do monte Sinjar, no noroeste do Iraque, para evitar sua aniquilação segura.

O que aumentou o perigo da situação é que Sinjar é uma montanha estéril e rochosa com cerca de 108 quilômetros de extensão e dez quilômetros de largura, que sobressai como a corcova de um camelo e que suporta temperaturas de até 43 graus durante o dia, como informou Kieran Dwyer, diretor de comunicações do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, de Erbil, capital do Curdistão iraquiano.

Dwyer também compartilhou outras estatísticas assombrosas. Mais de 200 mil iraquianos fugiram de suas casas desde 3 de agosto, na medida em que a violência dos grupos armados se intensificava, o que elevou o total de refugiados para 1,2 milhão de pessoas. O Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas dá proteção e ajuda as autoridades locais com abrigo para os refugiados, incluindo colchões e cobertas. O Programa Mundial de Alimentos da ONU montou quatro cozinhas comunitárias nessa área e forneceu dois milhões de refeições nas duas últimas semanas.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) forneceu água potável e sais reidratantes para ajudar a prevenir ou tratar a diarreia, bem como bolachas energéticas para 34 mil menores de cinco anos na última semana. O Fundo de População das Nações Unidas ajuda mais de 1.300 grávidas com produtos de higiene e assessora as autoridades locais fornecendo médicos para 150 mil pessoas.

No avião de volta de sua viagem à Coreia do Sul, em 18 de agosto, o papa Francisco aprovou uma intervenção no Iraque para deter a perseguição dos combatentes islâmicos contra os cristãos e demais grupos religiosos minoritários. É uma mudança drástica, já que o Vaticano normalmente evita o uso da força.

Mas o papa fez uma ressalva: que a comunidade internacional discuta uma estratégia, possivelmente na ONU, para que a intervenção não seja vista como “uma verdadeira guerra de conquista”. Pouco depois, o presidente da França, François Hollande pediu uma conferência internacional para discutir como enfrentar os insurgentes do Estado Islâmico que tomaram o controle de partes dos territórios da Síria e do Iraque.

As duas sugestões estão diretamente ligadas à intenção do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de presidir uma reunião do Conselho de Segurança da ONU durante sua participação na sessão anual da Assembleia Geral da ONU este mês. De concreto, Obama se centrará na luta antiterrorista e na ameaça de que combatentes estrangeiros viagem para zonas em conflito e se juntem às organizações terroristas. Além disso, todos os principais atores da região, inclusive aqueles com uma inimizade tradicional, como Irã diante de Arábia Saudita e Estados Unidos, devem participar.

É fundamental recordar que uma das principais razões das catástrofes que ocorrem em muitas áreas do Oriente Médio remonta diretamente à invasão ilegal e desacertada do Iraque pelo ex-presidente norte-americano George W. Bush (2001-2009) decidida em março de 2003. Supostamente Washington foi ao Iraque para eliminar as armas de destruição em massa em poder do regime de Saddam Hussein (1979-2003), que não existiam.

Quando veio abaixo o fictício argumento das armas de destruição em massa, a fundamentação da intervenção no Iraque passou rapidamente a ser a mudança de regime e depois o estabelecimento da democracia no mundo árabe. Mas os motivos verdadeiros estão no controle das jazidas de petróleo e na reconfiguração dessa região para que os interesses ocidentais possam manipulá-la.

Na realidade, o legado do maior revés na história da política externa dos Estados Unidos foi que o Irã se transformou na potência da região, o Iraque se converteu em um barril de pólvora para o conflito entre sunitas e xiitas, morreram mais de 200 mil iraquianos e quatro mil militares norte-americanos, e sobrou uma conta de US$ 2 bilhões para os contribuintes norte-americanos. Esse número continuará crescendo devido aos milhares de soldados que necessitarão de assistência médica e psicológica, e pela ajuda financeira, militar e técnica que o Iraque solicitará no futuro.

Tragicamente, alguns meios de comunicação, como a Fox News e muitas emissoras de rádio de direita, voltam a colocar no ar as mesmas fontes de desinformação, como o ex-vice-presidente Dick Cheney, o ex-subsecretário de Defesa, Paul Wolfowitz, o administrador dos Estados Unidos no Iraque, Paul Bremer, o senador John McCain e o comentarista Bill Kristol, para reescrever a história e dizer que a guerra no Iraque foi um sucesso.

Em uma democracia é fundamental ter uma mostra representativa de ideias em um debate estimulante sobre o Iraque e outros temas, mas é questionável e um disparate crer nos conselhos de um grupo tão contraproducente que apoia a insensatez de que o resultado seria positivo para os Estados Unidos se tivessem ficado mais tempo, deixado mais soldados ou investido mais sangue e dinheiro nessa região.

Negam-se a reconhecer que nem iraquianos nem iranianos queriam que os Estados Unidos ficassem, e que a população norte-americana se voltou contra a guerra falida. A isto acrescentamos o fato de o ex-primeiro-ministro iraquiano Nouri al Maliki ter tentado excluir os sunitas da divisão do poder e da participação no âmbito político, financeiro e cultural do Iraque.

Desde as decapitações do fotógrafo James Foley e do jornalista Steven Sotloff, impostas pela draconiana lei islâmica que viola os direitos humanos e civis, os desafios no Iraque se multiplicam dia a dia. É provável que ninguém no mundo saiba melhor disso do que o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que disse recentemente: “Posso trazer os líderes do mundo ao rio, mas não posso obrigá-los a beber”. Quando os líderes mundiais se reunirem no final deste mês na ONU, será hora para “beberem água” em beneficio de todos. Envolverde/IPS

* Bill Miller é correspondente do Washington International junto à ONU e produtor e moderador da Global Connections Television.