Itamar Franco era de uma cepa de mineiros que combina a inteligência da resposta na ponta da língua à turrice. Era um mineiro obstinado. Voltou à política como vice na chapa de Fernando Collor, não por afinidades eletivas ou companheirismo, que companheiros nunca foram, mas por conveniência eleitoral. De ambos. Itamar havia perdido a eleição em Minas, numa tentativa teimosa de chegar ao Palácio da Liberdade. Talvez espelhando-se em Getúlio, sem mandato, recolhia-se à sua Juiz de Fora, aos amigos chegados, para esperar. Fernando Collor queria ter vice de Minas, colégio eleitoral crucial para as eleições e no qual os outros candidatos também tinham fraca penetração. Após a recusa de Márcia Kubitschek, lembrado de que Itamar estava sem mandato, tinha sido bom e atuante senador, convidou-o. Itamar não foi um vice cômodo, porque opinioso e voluntarioso.
Assumiu a presidência após o impeachment e imprimiu a ela todas as suas marcas pessoais. A história julgará suas atitudes e suas ideias com isenção. A crônica contemporânea de um político que morre, após ter ajudado a mudar radicalmente o rumo da história brasileira, deve por bem identificar a marca que ele deixou.
A presidência de Itamar foi personalista e democrática. Contradição em termos típica do presidencialismo. Tinha ouvidos para o povo, mesmo se depois interpretasse essa voz à sua moda. Era aberto ao debate. Foi uma presidência controvertida, com muitos personagens controvertidos. Itamar não tinha receios em convocar para seu ministério pessoas com as quais se impressionava pessoalmente, embora jamais testadas em cargos executivos de maior complexidade.
Seu maior legado foi na economia. Curiosamente, área na qual errou muito na escolha de ministros. Mas, tinhoso, não parava de tentar. Teve seis ministros da Fazenda. Fernando Henrique foi o quarto. Quando se desincompatibilizou para a candidatura presidencial que seria vitoriosa, ainda o sucederam Rubens Ricupero e Ciro Gomes. Seu primeiro ministro da Fazenda, Gustavo Krause, era uma escolha acertada como ministro, mas totalmente fora da mira para o ministério da Fazenda. Os dois seguintes foram soluções caseiras, mineiras. Não deram certo. Itamar chamou seu ministro das Relações Exteriores, sabendo que trazia para o comando da economia um ministro com luz e ambições próprias, ideias formadas e grande prestígio pessoal. Ricupero e Ciro também eram personalidades exuberantes. Escolhas arrojadas. Talvez até pouco mineiras.
Itamar entendia pouco de economia, mas tinha uma visão de grandeza para o Brasil. Queria vê-lo transformado em grande potência econômica. Socorria-se, muitas vezes, de ideias sem respaldo na teoria econômica, mas sempre na direção do crescimento sustentado, ampliado, rumo ao status de potência. Apoiou o Plano Real, cujo miolo técnico não compreendia. Não foi apoio sem arestas. A relação entre o presidente e o ministro do Real e seus economistas foi frequentemente dificultosa. Mas o fato concreto é que Itamar Franco bancou o Real e Fernando Henrique e sua equipe fizeram o plano como entenderam que devia ser feito. O sucesso deu a Itamar um lugar de destaque na história do Brasil; a Fernando Henrique, a presidência e também presença no panteão da história; ao país o caminho para se tornar a potência econômica com a qual Itamar sonhava.
Não é pouco. Com todos os atropelos, erros, contrariedades, esta é uma página de virada da história do Brasil. Marca um antes e um depois. E a história dará o reconhecimento a quem o merece.
O real se mantém, porque Lula decidiu continuar a política da qual discordou desde o início. Adicionou a ela as políticas de transferência de renda, que ampliou também obstinadamente. Consolidou a abertura das classes médias aos “de baixo”, somente possível também porque a inflação estava domada e a transferência de renda aos mais ricos, que ela fomentava pela via da superindexação dos ganhos financeiros, fora eliminada.
Dessa forma, personagens desencontradas se encontram em um movimento histórico que deu ao país um novo horizonte.
Itamar fez parte dele, que descanse em paz, sabendo que já havia entrado para a história em vida e que no futuro ela continuará a se lembrar dele.
* Publicado originalmente no site Ecopolítica.