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Jovens de Nova York expõem cicatrizes da política policial

Um mural em Bushwick, Nova York, busca conscientizar sobre os direitos de seus habitantes na hora de tratar com a polícia. Foto: Kim-Jenna Jurriaanas/IPS
Um mural em Bushwick, Nova York, busca conscientizar sobre os direitos de seus habitantes na hora de tratar com a polícia. Foto: Kim-Jenna Jurriaanas/IPS

 

Nova York, Estados Unidos, 4/9/2013 – Um colorido mural ocupa uma fachada inteira de um prédio de três andares na esquina das avenidas Gates e Irving, no bairro nova-iorquino de Bushwick, no Brooklyn. Nele se vê um grupo de jovens filmando uma prisão com seus celulares. Acima, uma legenda que diz: “Você tem o direito de olhar e filmar as atividades policiais”. “Pintamos este mural para informar as pessoas sobre seus direitos”, explicou Justin Serrano, de 19 anos, que cresceu nesta comunidade de origem predominantemente latino-americana, onde cerca de um terço das famílias é pobre.

O muro, pintado por jovens do Make the Road New York, uma organização não governamental que tenta empoderar a juventude de comunidades trabalhadoras de toda a cidade, reflete a presença dominante que tem a polícia na vida deste setor da população de Bushwick. Também permite compreender sua relação com o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD).

Para os jovens que crescem em comunidades de imigrantes com a de Bushwick, essa relação esteve marcada na última década pela persistente política de parar, interrogar e revistar. Esta política de abordagem e revista (stop and frisk), permite aos agentes agirem em relação a pessoas que despertam suspeitas razoáveis de estarem envolvidas em alguma atividade criminosa. É uma tática básica da “tolerância zero” que Nova York aplica, e se tornou o “modus operandi” das gestões dos dois últimos prefeitos.

Michael Bloomberg, atual prefeito, e o comissário de polícia, Ray Kelly, atribuem a esta política a redução dos crimes violentos em toda a cidade e de terem tirado de circulação oito mil armas. Contudo, especialistas em justiça penal e defensores das liberdades civis questionam há tempos a efetividade desta política e que o NYPD a aplique especialmente nas comunidades pobres de imigrantes e negros.

Dados do NYPD mostram que, entre 2003 e 2012, a polícia parou e revistou quase cinco milhões de pessoas. Em aproximadamente 88% dos casos, a pessoa era negra ou latino-americana. E em 90% a polícia não conseguiu comprovar nenhum delito. Só no ano passado foram parados e revistados 400 mil vezes negros e latino-americanos. Embora a quantidade de pessoas abordadas nas ruas tenha disparado nos últimos anos, a apreensão de armas se manteve persistentemente baixa ao longo da década, e só aconteceu em menos de 1% das detenções.

Nova York, Estados Unidos, 4/9/2013 – Um colorido mural ocupa uma fachada inteira de um prédio de três andares na esquina das avenidas Gates e Irving, no bairro nova-iorquino de Bushwick, no Brooklyn. Nele se vê um grupo de jovens filmando uma prisão com seus celulares. Acima, uma legenda que diz: “Você tem o direito de olhar e filmar as atividades policiais”. “Pintamos este mural para informar as pessoas sobre seus direitos”, explicou Justin Serrano, de 19 anos, que cresceu nesta comunidade de origem predominantemente latino-americana, onde cerca de um terço das famílias é pobre.
Nova York, Estados Unidos, 4/9/2013 – Um colorido mural ocupa uma fachada inteira de um prédio de três andares na esquina das avenidas Gates e Irving, no bairro nova-iorquino de Bushwick, no Brooklyn. Nele se vê um grupo de jovens filmando uma prisão com seus celulares. Acima, uma legenda que diz: “Você tem o direito de olhar e filmar as atividades policiais”. “Pintamos este mural para informar as pessoas sobre seus direitos”, explicou Justin Serrano, de 19 anos, que cresceu nesta comunidade de origem predominantemente latino-americana, onde cerca de um terço das famílias é pobre.

 

No entanto, avistam-se mudanças com as duas vitórias históricas anotadas em agosto pelos defensores da reforma policial em Nova York, apesar de milhões de detenções de inocentes terem deixado danos colaterais, afirmam trabalhadores comunitários e juristas. O explosivo aumento das paradas e revistas direcionadas a homens jovens não anglo-saxões preocupa pelo impacto que pode ter em gerações que crescem excessivamente controladas pela polícia, segundo o pesquisador Brett Stoudt, professor de psicologia na Faculdade John Jay de Justiça Penal e do Centro de Graduados da City University of New York.

Abordagens e revistas por raça: brancos, negros, latino-americanos, asiáticos e outros. Fonte: Departamento de Polícia de Nova York
Abordagens e revistas por raça: brancos, negros, latino-americanos, asiáticos e outros. Fonte: Departamento de Polícia de Nova York

Entre 2008 e 2009, os jovens de 14 a 21 anos representaram um terço das paradas e revistas, apesar de constituir apenas a décima parte da população da cidade, revela um dos estudos. As reiteradas detenções policiais sem motivo têm um efeito desmoralizador nos jovens, enfatizou Stoudt.

A enorme persistência dessas medidas em certos bairros também cria um “entorno cíclico” que aumenta as possibilidades de os jovens dessas comunidades ficarem presos no sistema penal “por um motivo ou outro”, segundo Stoudt, coautor do informe “Práticas de abordagem, interrogatório e revista na cidade de Nova York”. Por exemplo, “em uma abordagem o agente pode encontrar uma pequena quantidade de maconha e o jovem em questão pode se assustar e sair correndo”, explicou à IPS.

Serrano já foi parado pela polícia na rua mais de 20 vezes. “Me sentia como se não fosse humano”, contou. Em uma ocasião se dirigia apressadamente para sua casa para levar remédios para sua mãe e acabou na delegacia. Em Nova York as experiências dos jovens com a polícia não se limitam às ruas, se estendem a escolas e prédios habitacionais, onde o NYPD pode ter presença legal. Esta vigilância de todos os aspectos da vida cotidiana pode alterar notavelmente a conduta pessoal e levar, por exemplo, uma pessoa a evitar pedir ajuda à polícia quando necessitar, pontuou Stoudt.

Sentado em um banco no parque, Serrano para de chupar seu sorvete por um momento para aconselhar dois amigos mais jovens que estão em suas bicicletas BMX. “Precisam largar as bicicletas. Desde que comecei a usar meu skate fui parado bem menos”, disse aos garotos. Serrano também deixou de passear pela sua vizinhança. Agora se reúne com seus amigos em um lugar de um bairro próximo, onde a polícia não os molesta.

 Detenções de inocentes, em verde-escuro, comparadas com o total de detenções, em verde-claro. Fonte: Departamento de Polícia de Nova York

Detenções de inocentes, em verde-escuro, comparadas com o total de detenções, em verde-claro. Fonte: Departamento de Polícia de Nova York

No bairro de Flatbush, no Brooklyn, poucos quilômetros ao sul de Bushwick, Keron Gray evita estar na rua com seus “barulhentos amigos” e se mantém longe de caminhos onde seja mais provável ser abordado. “É  indigno. Quando se está fazendo compras na Quinta Avenida (de Manhattan) isso não acontece”, afirmou.

Funcionários municipais defendem há tempos o sistema de parada e revista, argumentando que em certas áreas há maior prevalência de crimes violentos. Em uma decisão histórica, a juíza Shira Scheindlin rejeitou, no dia 12 de agosto, esse argumento e estabeleceu que a parada e a revista do NYPD criam “uma política de elaboração indireta de perfis raciais” que viola os direitos constitucionais dos que não são brancos. Scheindlin ordenou um processo drástico de reforma.

No final de agosto, o Conselho da Cidade de Nova York anulou um veto do prefeito e aprovou dois projetos que estabelecem o controle independente das políticas do NYPD e ampliam os recursos legais contra os perfis criminosos baseados em critérios tendenciosos. No entanto, o prefeito Bloomberg, que apelou da sentença, afirmou que as duas decisões limitarão o trabalho policial e terão como consequência a volta do crescimento dos crimes violentos.

Entre os fatos de agosto e a investidura de um novo prefeito em 2014, parece inevitável uma reforma da maior força policial dos Estados Unidos. Para Serrano, parte do dano é irreparável. “A primeira vez que fui detido, eu estava com meu irmão mais novo. Até hoje ele me vê diferente, com se fosse um criminoso”, contou. Envolverde/IPS