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A justiça universal tem seus dias contados na Espanha

Cartazes pedindo justiça por ocasião dos dez anos da morte do jornalista José Couso. Foto: Associação Irmãos, Amigos e Companheiros de José Couso
Cartazes pedindo justiça por ocasião dos dez anos da morte do jornalista José Couso. Foto: Associação Irmãos, Amigos e Companheiros de José Couso

 

Málaga, Espanha, 24/2/2014 – A aplicação da jurisdição universal tem seus dias contados na Espanha, por um projeto de lei que representará o descumprimento de mais de uma dezena de investigações abertas nos tribunais deste país e tornará muito difícil abrir novos processos por crimes que afetem toda a humanidade.

O governo direitista de Mariano Rajoy e o governante Partido Popular (PP) impuseram uma tramitação de extrema urgência no parlamento à reforma da Lei Orgânica do Poder Judicial, graças à sua maioria absoluta, e avançam com rapidez para colocar um cadeado na justiça universal em um dos países que mais a aplicou.

Com rejeição de todos os partidos de oposição, no dia 11 foi apresentado um projeto de lei com esse fim, um mecanismo que evita a solicitação de informes e outros trâmites, e o Ministério da Justiça pediu ao Congresso, no dia 17, medidas para acelerar ainda mais o processo.

O projeto de lei tramitará pelo regime de urgência e em uma só sessão plenária, segundo ficou decidido no dia 20, novamente com os únicos votos do PP, o que confirma sua pronta entrada em vigor. Sendo aprovado, “a Espanha se converterá no paraíso da impunidade”, alertou à IPS o especialista em jurisdição universal da Anistia Internacional, Ignacio Jovtis. E acrescentou que o projeto “não limita o princípio de justiça universal, mas o faz desaparecer”.

No dia 27 o Senado já votará a proposta. O princípio de jurisdição universal atribui aos tribunais nacionais a capacidade de perseguir e julgar uma série de crimes que, independente do lugar onde foi cometido e da nacionalidade de seus autores e vítimas, atentam contra o conjunto da comunidade internacional.

A reforma é criticada por mais de uma centena de organizações não governamentais e instituições nacionais e internacionais, que no dia 19 declararam que sua aprovação “representa um golpe devastador para a jurisdição universal e uma violação das obrigações internacionais da Espanha”.

A urgência se manifesta depois que, no dia 10 deste mês, um juiz da Audiência Nacional expediu ordens de prisão internacional contra cinco antigos dirigentes do Partido Comunista Chinês, por genocídio, tortura e crimes de lesa humanidade durante a repressão ao povo tibetano, entre os anos 1980 e 1990. “É uma reforma ad hoc para encerrar casos incômodos para a Espanha”, opinou à IPS a advogada e diretora executiva da organização Rights International Spain, Lydia Vicente Márquez.

Os requisitos que a reforma impõe são “impossíveis de cumprir” pelos tribunais espanhóis que quiserem investigar e perseguir crimes de genocídio, lesa humanidade ou de guerra, de natureza universal. Quando aprovado, os juízes espanhóis serão competentes para investigar esse tipo de crime apenas quando “o procedimento se dirigir contra um espanhol ou um cidadão estrangeiro que resida habitualmente na Espanha ou que esteja neste país e cuja extradição tenha sido negada pelas autoridades espanholas”.

“A agenda econômica está acima dos direitos humanos”, afirmou Jovtis. Essa reforma, acrescentou, é um passo a favor da impunidade em política criminosa e também “pode ser uma invasão do Poder Judicial por parte do Legislativo”, porque o parlamento estabelece o descumprimento das investigações abertas até que se regulamente o cumprimento dos novos requisitos, segundo a proposta diz em sua disposição transitória final.

O investigador da Anistia prevê que a imensa maioria dos casos abertos na Audiência Nacional com base na justiça universal, cerca de 25, serão arquivados. Um deles poderia ser o de José Couso, jornalista espanhol morto em Bagdá no dia 8 de abril de 2003, durante ataque do exército dos Estados Unidos ao hotel onde ficava a imprensa independente. Um juiz espanhol mantém condenados vários militares desse país, como responsáveis por sua morte.

“Estamos preocupados. Essa reforma é uma fraude absoluta e está feita na medida para arquivar nosso caso”, disse à IPS o irmão do jornalista, Javier Couso, da Associação Irmãos, Amigos e Companheiros de José Couso. Couso recordou, como antecedente da reforma, a reunião em Washington de Rajoy com o presidente Barack Obama. Também considerou que o legislador não deveria ser quem decide o arquivamento dos casos, porque isso é competência dos juízes.

Couso não descarta ir ao Tribunal Constitucional espanhol, ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos de Estrasburgo ou a tribunais de outros países, se a causa contra os militares norte-americanos for encerrada devido à reforma. A família de Couso se reuniu no dia 11 com todos os porta-vozes dos grupos parlamentares espanhóis para expressar sua grande preocupação pelo projeto. A principal força opositora, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), se comprometeu a estudar a possibilidade e entrar com recurso de inconstitucionalidade.

Jovtis considera “lamentável” que a Espanha, “referência e um fórum de esperança para alguns países da América Latina”, desande o caminho e vá contra a tendência europeia e mundial de incorporar à sua legislação o princípio de justiça universal.

No dia 21, soube-se que a juíza argentina María Servini, instrutora do processo contra os crimes do franquismo na Espanha, pediu à justiça espanhola a exumação do cadáver de uma vítima da ditadura de Francisco Franco (1939-1975). Trata-se de Timoteo Mendieta Alcalá, sindicalista fuzilado no cemitério da cidade de Guadalajara em 1939, e que está em uma fossa comum junto com 17 companheiros.

Jovtis destacou ainda que “84,4% dos países do mundo têm legislação universal e permitem as investigações judiciais com base neste princípio ao menos em um tipo de crime”. A Espanha “colocou-se, no passado, na vanguarda” da justiça universal “e agora não devemos deixar que fique para trás”, afirma uma centena de organizações na declaração conjunta contra a reforma, que foi entregue ao Parlamento Europeu pela organização Campanha Internacional pelo Tibete.

Além das causas de justiça universal abertas pelo genocídio no Tibete e da morte de Couso na guerra do Iraque, a Audiência Nacional instrui atualmente casos de genocídio em Ruanda, Guatemala e Saara. Também investiga o assassinato do sacerdote espanhol Ignacio Ellacuría, em 1989, em El Salvador, e do diplomata espanhol Carmelo Soria, em 1976, durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). Segundo Márquez, “há um consenso internacional para que não fiquem sem castigos os crimes considerados mais graves. Não queremos que fiquem impunes e voltem a ocorrer”. Envolverde/IPS