Em 30 anos, ou menos, Gonçalo M. Tavares ganhará um Nobel. A previsão, audaciosa, de José Saramago, dá a dimensão que o autor nascido em Angola, em 1970, toma na literatura portuguesa contemporânea. Traduzido e distribuído em 35 países, Tavares está no Brasil para a Bienal do Livro Rio, onde deve cruzar com 600 mil pessoas, 170 mil das quais são estudantes. Serão encontros, acredita, com potencial de “despertar” nesses jovens o prazer pela leitura.
Para isso, contudo, defende que uma “leitura aconselhada”, em que os alunos tenham poder de escolha e orientação, substitua a obrigatória e, assim, mitigue os riscos de as listas de livros exigidos os afastarem de autores essenciais. “A leitura deve ser associada ao puro prazer. Muitas vezes, a imposição de ler um livro até o fim, aos 12 ou 13 anos, pode fazer com que a pessoa se afaste de um autor muito importante, extraordinário, porque entrou nele quando não estava preparada”, diz o escritor, que também lança, pela Leya, Uma Viagem à Índia.
Criador de romances duros, que define como “uma parte negra”, Tavares venceu, com Jerusalém, o Prêmio José Saramago em 2005 e, em 2007, o Portugal Telecom. No lado quase oposto, em uma atmosfera lúdica, personagens de nomes como Calvino, Brecht e Valéry convivem na série O Bairro. Sob histórias aparentemente simples, cada título guarda questões e discussões profundas e, além de adaptações teatrais, começam a ser utilizados por professores nas salas de aula portuguesas.
Carta na Escola: Suas vindas à Flip, a publicação em grande escala de sua obra por editoras brasileiras e, agora, a Bienal do Rio sinalizam a força de sua presença no Brasil. Que diálogo enxerga entre seus livros e os leitores daqui?
Gonçalo M. Tavares: Tenho sido, felizmente, muito bem acompanhado pelos brasileiros. Os livros vão saindo até ao mesmo tempo que em Portugal. Há quase oito ou nove anos minha ligação com o Brasil se mantém firme tanto no nível de leituras quanto no de visitas – ainda assim não tão frequentes quanto eu gostaria. O principal, nela, é que há sempre muito feedback de leitores e também de artistas e pessoas ligadas ao teatro, que têm feito peças com base, por exemplo, nos senhores de O Bairro. Esse tipo de reação agrada bastante a quem escreve.
CNE: Quando está aqui, como costumam ser seus encontros com os leitores?
GMT: É um pouco como aqui em Portugal. Há alguns com mais idade, mas há também muitos de 20, 30 anos que, muitas vezes, fazem da leitura um ato prévio, transformam-se em criadores. Há também um tipo da parte acadêmica que se aproxima fazendo teses sobre os livros. Por vezes aparecem leitores com seus 80 anos, mas também muitas pessoas novas, e agrada-me que minha obra não seja para um grupo apenas. Acho que os livros devem pertencer àqueles que neles quiserem entrar. E são obras que, de certa maneira, procuram que os leitores sejam a segunda parte, que participem na interpretação e, nessa expressão, se tornem ativos.
CNE: O quanto megaeventos como as bienais conseguem atrair e formar esse perfil ativo de que fala?
GMT: Pela experiência anterior que tenho, muitas vezes a palestra é um despertar para o livro. No meu caso, penso que os livros devem estar em primeiro plano, ou seja, o autor deve se apagar um pouco, os livros é que são o essencial. Mas é claro que o contato pessoal, o fato de os leitores cruzarem corpo a corpo conosco, é algo que pode marcar de uma maneira diferente.
CNE: O impacto desses encontros é diferente em jovens leitores?
GMT: Aqui em Portugal fui umas duas ou três vezes a escolas secundárias e, realmente, para alunos muito novos, e mesmo universitários, é evidente que cada contato, cada experiência que têm com escritores, é uma coisa muitas vezes marcante. Passados os anos, aquilo fica.
CNE: Sobre esse jovem que está agora tomando gosto pelos livros, o que considera o principal fator na formação e, principalmente, na manutenção do hábito da leitura?
GMT: Não há regras, mas parece-me importante, em primeiro lugar, associar a leitura a uma vontade, ou seja, tentar que não seja nada obrigatório. Não sou muito entusiasta da leitura obrigatória, digamos que prefiro a ideia da leitura aconselhada. Em vez de fazer o jovem ler três ou quatro livros predeterminados, poderia haver 15 e ele escolher dentre esses. Ou seja, haver sempre a opção, para que ele sinta que há um grau de liberdade, de decisão individual, que não é uma imposição. Creio que a leitura deve ser associada ao puro prazer. Se alguém não está gostando de um livro, deve interrompê-lo e voltar a ele quando achar que está preparado. Muitas vezes, a imposição de ler um livro até o fim, aos 12 ou 13 anos, pode fazer com que a pessoa se afaste de um autor muito importante, extraordinário, porque entrou nele quando não estava preparada. Isso acontece com Camões e Eça de Queirós aqui em Portugal. São clássicos indispensáveis para qualquer leitor, mas alguns jovens, naquela fase da vida, não entram nos livros.
CNE: Como evitar, então, que a obrigatoriedade afaste indiretamente alguns alunos da leitura?
GMT: A lógica dos livros obrigatórios quase assume que todas as pessoas naquela série estão na mesma idade de maturação, na mesma idade de leitor. Vinte pessoas de 15 anos podem estar na mesma turma e algumas terem idade de leitor de 30 anos, outras de dez. A idade de leitura não corresponde à idade, digamos, biográfica e, portanto, temos de respeitar essa idade individual, quase interna. Por isso mesmo, creio que se deve abrir a biblioteca aos alunos, para que possam folhear os livros, abrindo um e outro até escolherem algum. Um modelo possível e simpático é o jovem entrar acompanhado por leitores mais velhos, que podem orientá-lo. Assim temos, por um lado, a escolha individual e, por outro, a troca e o saber ouvir sugestões de leitores mais maduros.
CNE: As indicações dos professores têm bastante peso no índice de leitura brasileiro. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, lê-se 4,7 livros por ano, mas, se descontarmos os títulos lidos fora da escola, o número cai para 1,3 livro por habitante/ano. O que é possível fazer para evitar uma queda tão brusca no “interesse” por livros fora da sala de aula?
GMT: Não há regras. Por vezes, ter de fazer uma prova é um empurrão para a pessoa que não ia ler. Como em tudo, acho que na leitura deve haver, por um lado, a vontade e, por outro, uma certa disciplina, no sentido de se impor que naqueles dias se vai ler tal livro. Aqui em Portugal está se desenvolvendo o Plano Nacional de Leitura, que é um projeto bastante interessante. Uma das coisas que se faz é ter uma ou duas horas por semana em que os jovens ficam na sala de aula lendo ficção, poesia, que as próprias turmas escolhem. A escola está de certa maneira muito associada a um livro técnico, de estudo, para aprender coisas quantitativas, então isto é muito revolucionário: introduz nela o imaginário literário.
CNE: Há quem veja os títulos da série O Bairro, como O Senhor Valéry, como mais acessíveis aos jovens leitores. O senhor concorda?
GMT: Realmente, O Bairro tem histórias e um mundo muito lúdico, é quase uma utopia. Eu até brinco, na França, que é uma espécie de aldeia do Asterix que tenta resistir contra a barbárie deste século. O Senhor Brecht tem uma espécie de humor negro, O Senhor Kraus, um lado de sátira e coisas de lógica. É um mundo que tem várias leituras e uma delas é a do prazer imediato. Os romances são mais exigentes no sentido moral, filosófico, e são por outro lado muito duros, são uma parte negra – apesar de haver pessoas com 17, 18 anos que os leem. Aqui em Portugal, professores de Filosofia ou Português utilizam pequenas histórias de O Bairro para as aulas e procuram usar conceitos que estão ali. Por exemplo, O Senhor Valéry é um bom exemplo de livro que pode ser lido para crianças a partir dos seis anos, mas também permite outras discussões. Agradam-me os títulos que aparentemente têm histórias muito simples. O Senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos e, assim, era alto, mas só por pouco tempo: há aí também um conto sobre a insatisfação.
CNE: Quem pensa em adicionar entre os moradores de O Bairro? Certa vez, o senhor disse que planejava escrever um volume com Clarice Lispector.
GMT: Sou adepto incondicional de Clarice Lispector, acho-a uma escritora extraordinária. É uma das senhoras que teria honra em ter n’O Bairro. Ele tem um design já pronto, com cerca de 40 personagens – e saíram já dez. É meio uma utopia, uma que nunca vou terminar. A ideia é que seja um lugar em que alguns vivem e que outros visitam. O nome que dou às personagens nada tem a ver com a biografia delas, são autônomas. Mas, de certa maneira, as marca. A escolha desses homenageados não tem a ver com serem os meus autores favoritos. Há nomes que são determinantes, como Lispector, Machado de Assis, Thomas Mann, e não estão ali. É uma escolha quase instintiva, de sentir que nomes me remetem a questões mais lúdicas, muito mais do que a eleição de um cânone de autores.
CNE: Como leitor, quais são suas preferências? Lê algum brasileiro?
GMT: No geral, leio coisas distintas, gosto bastante de ficção, ensaios, ciência, poesia e teatro. Num mesmo dia, passo por diferentes livros. Sobre os brasileiros, leio inúmeros. Há aqui na minha frente, por acaso, o livro do Luiz Ruffato, que tem uma grande história, Eles Eram Muitos Cavalos. Mas é claro que não consigo acompanhar tudo, porque, infelizmente, não chegam muitos títulos interessantes que vão saindo aí. São poucas as coisas que vêm para cá, espero que isso em breve se altere.
CNE: A esse respeito, boa parte dos autores lusófonos que conhecemos pós-Saramago, como Mia Couto, José Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, e mesmo você, chegou ao Brasil graças ao incentivo do governo português. O governo brasileiro, por outro lado, é mais tímido. Isto dificulta a divulgação da nossa literatura aí?
GMT: Quando digo que não chega tudo é porque há muita produção de qualidade no Brasil e, portanto, não é possível vir toda. E há muitos autores portugueses de qualidade que também não chegaram ao Brasil. Por outro lado, há uma tradição que começa. Por exemplo, há uma coleção muito importante que saiu, a Biblioteca Essencial da Literatura Brasileira. Às vezes, não é muito organizado, porque são diferentes editoras publicando diferentes autores, mas já há muitíssimos brasileiros editados e sendo acompanhados aqui, como Bernardo Carvalho e Raduan Nassar. Eu diria que a situação não é perfeita, mas não chega a ser má. Se um português quiser conhecer literatura brasileira, tem muito à disposição.
CNE: Retomando os clássicos, que são normalmente por onde os jovens começam a estudar literatura. Sua escolha da epopeia como gênero para seu novo livro Viagem à Índia é uma tentativa de reavivá-la, modernizando-a?
GMT: Viagem à Índia foi, de fato, uma tentativa de ver se se poderia voltar ao épico, que de certa maneira é considerado de outro tempo, não atual. O livro relata a história de uma personagem que sai de Lisboa em busca de uma certa espiritualidade na Índia, e sua estrutura é mais ou menos a de Os Lusíadas, mas com uma personagem do Século 21, ou seja, com objetivos, digamos, menos grandiosos. É relevante mostrar que os clássicos são clássicos, porque nós, em 2011, voltamos a olhar para eles e a fazer coisas a partir deles. Um clássico que fica fechado, e sobre o qual ninguém intervém com o tempo, deixará de sê-lo. Clássico é aquilo que está sempre atual e, assim, exige das pessoas que estão vivas uma resposta.
LIVROS DE GONÇALO M. TAVARES
O Senhor Valéry e a Lógica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011
O Senhor Swedenborg e as Investigações Geométricas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011
O Senhor Kraus. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
O Senhor Brecht. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
* Clarice Cardoso é formada em jornalismo, possui especialização em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Trabalhou de 2007 a 2011 no jornal Folha de S.Paulo, e é editora assistente de Carta na Escola e Carta Fundamental.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.