Genebra, Suíça, 26/7/2011 – O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou a preponderância da liberdade de expressão nos assuntos referentes aos direitos humanos, deixou assentado que somente poderá ser cerceada nos casos extraordinários e proclamou pela primeira vez o acesso irrestrito de todas as pessoas à informação pública. Após dois anos de debate, o Comitê emitiu uma observação geral que interpreta em particular as restrições admissíveis à liberdade de expressão.
A organização não-governamental Article 19, especializada no tema da liberdade de expressão, disse à IPS, de sua sede em Londres, que está contente pelo pronunciamento do Comitê. Embora em suas observações gerais descarte o exame de casos particulares, as interpretações adotadas no dia 21 se atêm a episódios vinculados com a liberdade de expressão, como os violentos protestos desatados pela publicação em 2005 em um jornal da Dinamarca de caricaturas de Maomé, ou, mais recentemente, os abusos atribuídos a um jornal do magnata australiano Rupert Murdoch.
O que faz a observação geral, de uma maneira franca e detalhada, é reafirmar o papel protagonista que desempenha a liberdade de expressão nos direitos humanos, resumiu para a IPS o especialista irlandês Michael O’Flaherty, que foi relator do tema durante o debate. O Comitê, que supervisiona a aplicação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, deixou claro que somente se poderá limitar a liberdade de expressão nas circunstâncias mais excepcionais.
Por outro lado, o organismo, integrado por 18 especialistas independentes, identificou e forneceu detalhes do direito de acesso à informação, disse O’Flaherty. É a primeira vez que o Comitê examina este elemento, que também raramente foi analisado até agora pelo direito internacional dos direitos humanos, ressaltou.
Sejal Parmar, assessor legal da organização Article 19, saudou o reconhecimento positivo que o Comitê fez do direito de acesso à informação como um direito humano, uma dimensão importante da liberdade de expressão. O jurista também ressaltou a afirmação do organismo especializado da ONU de que toda restrição aos meios de comunicação e sistemas de informação baseados em sites na internet deve ser compatível com a liberdade de expressão.
O texto em inglês das observações será divulgado no dia 29, quando termina a segunda sessão anual do Comitê. A aprovação definitiva será decidida na reunião de outubro, quando estiverem prontas as traduções oficiais para o espanhol e o francês, os dois outros idiomas de trabalho. O’Flaherty destacou que o convincente da observação geral se evidencia na linguagem adotada pelo Comitê em questões como blasfêmia ou injúria à religião.
O órgão estabelece que os limites à liberdade de expressão por essas razões só podem ser situações excepcionais, definidas pelo Pacto, que se refiram à incitação ao ódio ou à discriminação, por motivos religiosos ou raciais. O especialista argentino Fabián Salvioli disse que o Comitê não se deteve em temas específicos, como as caricaturas de Maomé. E isso não faz falta, porque o parágrafo sobre difamação religiosa é muito claro, explicou. As expressões, inclusive ofensivas, não devem ser penalizadas, a não ser que incitem ao ódio, o que vem a ser outra coisa, ressaltou.
O artigo 20 do Pacto estabelece que “toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência estará proibida por lei”. A decisão do Comitê deve ser destacada por sua firmeza contra as leis referentes à blasfêmia, afirma a Article 19, a organização que tomou seu nome do artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos que consagra a liberdade de expressão. Dezenove também é o número do artigo do Pacto de Direitos Civis e Políticos que se ocupa igualmente da liberdade de expressão.
Parmar disse que o parágrafo 50 da observação geral declara que “proibições de demonstrações por falta de respeito a uma religião ou a outros sistemas de crenças, incluídas as leis de blasfêmia, são incompatíveis com o Pacto, exceto em circunstâncias específicas previstas no artigo 20.2” do referido tratado. É responsabilidade dos Estados que “essas leis não permitam discriminar contra uma, ou mais, religião ou sistemas de crenças, ou de seus adeptos contra outras, ou de crentes religiosos contra não crentes”, disse Parmar.
Também cabe aos Estados fazer “com que essas leis evitem ou castiguem as críticas aos líderes religiosos ou os comentários sobre doutrinas ou sobre princípios de fé’, afirmou o jurista da Article 19 em uma avaliação que fez a pedido da IPS. Salvioli respondeu negativamente à possibilidade de o escândalo pelas escutas ilegais por parte de jornais de Murdoch na Grã-Bretanha demonstrar a necessidade de impor limites à liberdade de expressão. “A liberdade de expressão é absoluta, já tem limites. É um direito sujeito a limitações, que estão claramente consignadas no artigo 19.3 do Pacto”, afirmou.
O especialista argentino destacou que o Comitê tem suficiente jurisprudência nesse sentido. Toda limitação que não seja racional e proporcional e que reúna algum dos requisitos do artigo 19.3 é inconsistente com o Pacto. O inciso 3 do artigo 19 estabelece que as restrições à liberdade de expressão deverão estar expressamente fixadas por lei, sendo necessárias para: a) assegurar o respeito aos direitos ou à reputação dos demais, e b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde ou da moral públicas.
E não é a observação do Comitê que diz isso, é minha opinião pessoal: toda restrição deve ser avaliada de uma maneira restritiva, disse Salvioli. Isto é, não podemos entender as restrições à liberdade de expressão de uma maneira ampla, acrescentou. A observação também oferece indicações sobre a obrigação dos Estados em garantir a pluralidade informativa. Esta é outra coisa importante, destacou.
A liberdade de expressão implica o direito de as pessoas receberem informação das fontes mais diversas e, portanto, é preciso evitar a concentração de poder, tanto de monopólios do Estado como de grupos privados, buscando um justo equilíbrio e uma alta pluralidade informativa, afirmou Salvioli. Porém, o Comitê da ONU não diz ao Estado como deve fazê-lo, explicou o especialista argentino, mas é ele que deve tomar as medidas, devendo saber que tem a obrigação de garantir o acesso mais amplo à informação.
Outro parágrafo das observações está dedicado ao que se costuma chamar de “leis da memória”. Na realidade, não é um termo legal, mas apenas uma fórmula fácil de descrever uma legislação, explicou O’Flaherty. O documento emitido pelo Comitê determina claramente que nenhum governo pode indicar ao seu povo o que deve pensar, disse o relator. Portanto, qualquer lei que proíba a publicação de versões sobre o passado ou de diferentes interpretações da história deverá ser elaborada com extremo cuidado, advertiu.
Dessa forma, as leis não violarão a liberdade de uma pessoa de sustentar uma opinião e seus efeitos não excederão o que se permite restringir sob a liberdade de expressão, acrescentou O’Flaherty. Salvioli recordou que alguns países criaram leis sobre a memória e por isso o Comitê indiciou que nenhum tipo de lei, incluídas essas normas, deve impedir a possibilidade de alguém expressar sua opinião livremente sobre fatos históricos. Entretanto, preveniu que essas opiniões não devam cair na apologia ao ódio nacional, racial ou religioso, como estabelece o Pacto.
A IPS perguntou a O’Flaherty se as noções de liberdade de expressão e de direito de acesso à informação incluem também o conceito de direito à comunicação. “Sem dúvida alguma. Mencionei o acesso à informação porque é algo novo na observação geral, mas a maior parte deste texto trata exatamente do que você acaba de descrever, respondeu o especialista irlandês. Refere-se ao seu direito humano fundamental e importante de se comunicar com outros, não apenas necessário por si só, mas porque muitos outros direitos humanos dependem dele, explicou.
A disposição geral adotada pelo Comitê ocupa-se também da forma como as novas tecnologias estão mudando a expressão. Observamos que, embora as plataformas da informação mudem, os princípios fundamentais que já foram focados claramente com relação aos meios tradicionais se transferem de maneira lógica e previsível também aos novos meios, explicou O’Flaherty. Talvez a mudança seja nosso reconhecimento, e da observação geral, de que a função do jornalismo também está em processo de mudança, afirmou.
A declaração de Parmar também lembra que o parágrafo 50 da observação geral do Comitê é um êxito para um número importante de organizações, encabeçadas pela Article 19, para a qual o Comitê de Direitos Humanos deveria destacar a contradição entre o artigo 19 do Pacto e as leis de blasfêmia. O jurista afirmou que o parágrafo 50 segue a decisão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que em abril deste ano rechaçou o conceito de “difamação de religiões”, em uma resolução sobre discriminação de pessoas baseada em suas crenças. Envolverde/IPS