Trípoli, Líbia, 25/10/2011 – Um homem com uma faca sacrifica dois camelos em uma caminhonete azul. “Deus é grande”, grita enquanto os animais sangram com um corte no pescoço. Eram quatro da tarde em Trípoli, minutos antes de ser declarado oficialmente o fim da guerra na Líbia. A execução de Muammar Gadafi (1969-2011) no dia 20, por rebeldes que o capturaram em Sirte – sua cidade natal, 350 quilômetros a leste da capital – anunciou a esperada declaração oficial de que a Líbia está completamente sob controle do Conselho Nacional de Transição (CNT).
No entanto, a ansiada declaração do final da guerra, iniciada em fevereiro, feita no dia 23, não ocorreu em Trípoli, mas em Bengasi, a segunda cidade do país, no nordeste do país. “A revolução começou ali. De certo modo, é certo desfrutarem desse privilégio”, disse Mohammad Shamaad, um dos ainda escassos residentes de Trípoli que chegavam à Praça dos Mártires.
Os reunidos na Praça no começo da tarde chegavam a apenas dois mil, nem de longe a quantidade de gente que saiu às ruas para comemorar quando os rebeldes chegaram à capital há dois meses. Apesar do escasso comparecimento, Mohammad Arabi, um imã de 26 anos, subiu no palco preparado para a ocasião e anunciou no microfone que a declaração de Bengasi era iminente.
Não foi tanto a fraca chuva ou a ausência da prometida tela gigante de televisão que fez muitos dos presentes voltarem para casa. Essa era a única maneira de ouvir as declarações que fechariam um doloroso capítulo de oito meses, ou de quatro décadas, para os que nunca acreditaram que seu país estava realmente sob o controle das massas, como pregava Gadafi.
A imagem de Bengasi mostrada nos televisores dos cafés do centro de Trípoli nada tinha a ver com o que se viveu na até hoje principal Praça da Líbia. Em um discurso de 45 minutos, Mustafá Abdel Khalil, presidente do CNT, reivindicou a importância da unidade nacional e da transição política que será concretizada nas eleições convocadas para junho de 2012.
Contudo, a declaração da libertação total do país chegou com o vice-presidente e porta-voz do CNT, Abdel Hafiz Ghoga: “Levante a cabeça, sois uma Líbia livre”, repetiu o ex-preso de Gadafi. Esse era um dos lemas mais gritados pelos rebeldes líbios desde o começo do levante. Logo que acabou a transmissão desde Bengasi, os habitantes de Trípoli se dirigiram ao lugar onde realizaram as comemorações desde a inesperadamente rápida ocupação de Trípoli, no dia 22 de agosto.
Na realidade, nestes dois meses, buzinaços, tiros para o ar e cânticos se converteram em elementos da vida diária na capital da Líbia. Ao anoitecer, a Praça dos Mártires era uma enorme aquarela onde se misturavam o verde, vermelho e negro da bandeira líbia anterior e posterior a Gadafi e, em menor medida, o amarelo e o azul dos bereberes, uma minoria duramente reprimida nas últimas quatro décadas.
“Lutaremos para que nossa língua, o tamazight, seja reconhecida como oficial na nova Constituição”, disse à IPS Tarik Yerro, um berebere originário das montanhas de Nafusa, sudoeste de Trípoli. Embora a diferença entre árabes e bereberes comece pela própria língua, não é menos certo que as rivalidades entre as tribos constituam também um desafio que a nova Líbia terá de enfrentar de forma imediata.
No momento, a proclamação da libertação desde Bengasi, e não de Trípoli, gerou mais uma dúvida na Praça, quanto ao peso real que a capital tem sobre o CNT. Mas a maioria dos presentes insistia que “todos os líbios são irmãos”, referindo-se às palavras de Khalil sobre a reconciliação. “A rivalidade é alimentada pelos políticos que lutam pelo poder nas mais altas esferas”, disse à IPS Ahmed Kilani. “O resto é o povo que foi às ruas e morreu pela liberdade”.
Por outro lado, do morto que mais se falou nos últimos dias foi Gadafi. A câmara frigorífica onde seu cadáver é conservado na localidade de Misurata tornou-se um lugar de peregrinação. Os líbios aguardam pacientemente na fila para tocar, golpear ou saltar sobre o corpo do antigo líder. E a visita não é completa até tirar um retrato ao lado do mesmo fazendo o sinal da vitória. O passado recente e as expectativas de mudanças, políticas e sociais, deram o tom às conversas na Praça.
Também havia muita expectativa quanto a uma promessa pública feita em Bengasi por Khalil: dez mil dinares (cinco mil euros) para cada família líbia, e uma quantia maior para aquelas que tiveram feridos ou mortos. “Só acreditarei quando tiver o dinheiro nas mãos. Até então prefiro não me iludir”, disse um jovem com uma bandeira nacional aas costas.
“Darei uma parte para as famílias dos mártires. O resto guardarei para o futuro”, disse Hassan Badrisi, antigo guia turístico que lamenta “ter de esperar” que os turistas voltem ao seu país. Ahmed Ghezali também tem claro o que pretende fazer com o dinheiro: “irei para a Europa e, se puder, para os Estados Unidos, e só voltarei quanto este país for o que todos os líbios merecem”. Envolverde/IPS