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Linchamentos se tornam habituais em Serra Leoa

As ruas de Freetown são frequente cenário de linchamentos. Foto: Tommy Trenchard/IPS

 

Freetown, Serra Leoa, 21/1/2013 – Em uma noite de névoa e sem estrelas da capital de Serra Leoa, um adolescente corre desesperadamente pela rua antes de ser violentamente jogado ao solo por um transeunte. Imediatamente se espalha a notícia de que foi pego um ladrão e logo chegam homens de todos os lados. Em um minuto a estreita rua se enche de gente e o rapaz, que afirma não ter roubado um telefone celular, como é acusado, recebe o primeiro de uma série de golpes que continuarão por cerca de 40 minutos.

Os atacantes usam paus, tijolos e pedras. “Vamos matá-lo”, diz um homem excitado, balançando no ar um pesado pedaço de pau e atingindo a cabeça do jovem, que sangra profundamente e tenta se proteger. Finalmente, desnudo e quase não conseguindo se manter em pé, o traumatizado adolescente é expulso do lugar pela multidão e fica à mercê de sua própria sorte. “Esse vai morrer durante a noite. É um ladrão, uma pessoa má”, afirma um homem.

A justiça pelas próprias mãos está aumentando neste país da África ocidental de quase seis milhões de pessoas. O fenômeno tem vários fatores, como a ineficiência do sistema judicial, a propagada falta de confiança na polícia e o legado de grupos de autodefesa que operaram durante a longa guerra civil. Dez anos depois de encerrado o conflito interno, Serra Leoa é um país pacífico. As últimas eleições presidenciais se caracterizaram por maciças campanhas contra a violência e aconteceram sem incidentes. Contudo, enquanto a violência política é condenada de forma generalizada, os ataques espontâneos contra supostos delinquentes recebem poucas críticas.

Ibrahim Tommy, diretor executivo do não governamental Centro de Responsabilidade e Estado de Direito, afirma que o aumento da vigilância parapolicial está diretamente relacionado com o mau funcionamento do sistema judicial. “O que a população faz é responder à debilidade do sistema, à falta de capacidade de fazer justiça em um período razoável de tempo”, disse à IPS. “Então, o que fazem é bater na pessoa. Enquanto alguém puder por um tempo suficiente bater no suspeito, se sentirá satisfeita”, pontuou. Como disse um homem enquanto batia no adolescente acusado de roubar um celular, “se o entregarmos à polícia, estará aqui novamente no dia seguinte”.

Tommy destaca em especial as demoras burocráticas, que são obstáculos à participação de testemunhas nos julgamentos. “O que acontece é que alguém é preso, levado à delegacia, processado, mas ninguém vai testemunhar. Neste momento, ao juiz não resta outra opção a não ser libertar o acusado. Para uma condenação são necessárias testemunhas”, afirmou.

“As pessoas neste país não vão aos tribunais testemunhar”, concordou Ibrahim Samura, superintendente adjunto da polícia. Muitos resistem a perder seu tempo em casos que demoram muito. Outros temem ser alvo de represálias por seus depoimentos. Nem as próprias vítimas vão aos tribunais, contou à IPS. Segundo Tommy, a falta de participação de testemunhas é apenas um dos fatores por trás da baixa taxa de sentenças. Para ele, alguns dos criminosos fazem acordos com autoridades policiais para não serem acusados. “Na maioria das vezes, são detidos pelos policiais e, após um dia ou dois, depois que o público esquece o ocorrido, são libertados secretamente”, afirmou.

Além disso, a cultura de “justiça de rua” tem suas raízes na guerra civil, quando surgiram grupos de autodefesa diante do fracasso dos militares em lhes dar segurança contra os ataques da rebelde Frente Revolucionaria Unida. “A vigilância parapolicial realmente começou durante a guerra”, explicou Tommy. “Aconteceu quando membros da população perderam a fé nas forças de defesa e pensaram que deveriam fazer algo para sua própria proteção e segurança, assim tentaram preencher o vazio deixado pela lamentável conduta dos militares”, acrescentou.

Hoje os casos de ataques por parte de vigilantes cidadãos são comuns em Freetown. No principal hospital da cidade, a enfermeira Dura Kamara está acostumada a tratar vítimas da violência de rua. “Chegam ao menos uma ou duas vezes por semana, em condições muito sérias. As pessoas jogam nelas ácido, batem e quebram seus ossos, as atacam com facões”, acrescentou.

Alguns nem mesmo chegam vivos ao hospital, vão diretamente para o necrotério da cidade, onde trabalha Alhaji Kanjeh. “É muito comum. Aqueles que são pegos roubando apanham até morrer”, contou à IPS. Kanjeh mostra a foto de um adolescente que foi assassinado por uma multidão perto do estádio nacional, que tentou roubar um motorista e pagou com a vida. “Nunca soubemos seu nome”, disse o empregado do necrotério, onde chegam vítimas da justiça de rua de apenas 15 anos. Os ladrões que morrem pelas mãos da população raramente são identificados ou reclamados por familiares, que temem ser estigmatizados como delinquentes.

“Quando a polícia vem aqui com o cadáver, entra como desconhecido”, indicou Kanjeh. Se nenhum familiar reclamar o corpo, é enterrado em vala comum. Para Owizz Koroma, chefe forense do governo, a justiça pelas próprias mãos se tornou rotina, e isto significa novos desafios para seu escritório, responsável pelos cadáveres. “Realmente estou sob enorme pressão para fazer coisas para as quais não tenho orçamento… Os enterros e o combustível” para queimar os corpos. “Soa horrível, mas esta é a realidade”, afirmou. Envolverde/IPS