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Livre comércio? Não, obrigado

Cristina Fernández e Wen Jiabao em teleconferência com seus pares Dilma Rousseff e José Mujica. Foto: Presidência da Argentina

 

Buenos Aires, Argentina, 9/8/2012 – Mais além da predisposição dos governantes do Mercosul, a proposta da China de transitar para um acordo de livre comércio carece de possibilidades, ao menos no curto prazo. Especialistas e industriais temem a invasão de produtos asiáticos e que a competição seja muito desigual. Embora as fontes ouvidas pela IPS concordem com as perspectivas de um forte aumento do comércio e dos investimentos entre o Mercosul e a China, a possibilidade de um acordo de livre comércio parece pouco realista no atual cenário.

O projeto de associação foi transmitido pelo primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, aos governos do bloco em Buenos Aires, quando em 25 de junho visitou a presidente argentina, Cristina Fernández. Por videoconferência, ambos somaram às deliberações a presidente Dilma Rousseff, e seu colega do Uruguai, José Mujica. Os quatro governantes celebraram a ideia de ampliar a aproximação comercial entre as partes.

A crise institucional, que surgiu em 22 de junho no Paraguai, com a fulminante destituição do presidente Fernando Lugo, impediu a participação deste país, o quarto membro fundador do bloco. De todo modo, Assunção enfrenta a encruzilhada de continuar mantendo relações diplomáticas com Taiwan ou aceitar a exigência de acabar com elas para poder negociar com Pequim. Já a Venezuela ainda não tinha sido aceita com quinto membro pleno, o que ocorreu em 31 de julho, em Brasília.

Na última cúpula ordinária semestral do Mercosul, realizada na província argentina de Mendoza, quatro dias após a visita de Jiabao, os governos de Argentina, Brasil e Uruguai se comprometeram a aumentar a cooperação com a China. Também aprovaram uma proposta para enviar uma missão comercial conjunta este ano à cidade chinesa de Xangai, principal centro financeiro e comercial desse país. Contudo, não foram longe na oferta de livre comércio do gigante asiático que, se for acertado, será um processo longo e complexo.

Para o brasileiro Mauricio Mesquita Moreira, especialista em comércio internacional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), não há condições para implantar este tipo de acordo no futuro próximo. “Por um lado, Argentina e Brasil têm uma indústria muito vulnerável à competição asiática, e na economia chinesa o peso do Estado ainda é muito forte na promoção industrial” para aceitar a liberalização, explicou à IPS. “Os sócios menores, como Uruguai e Paraguai, carecem de estrutura industrial e poderiam se beneficiar de um acordo com a China, mas estar no Mercosul também lhes dá benefícios, como o acesso privilegiado a mercados maiores” do próprio bloco, detalhou.

Moreira esteve este mês em Buenos Aires para apresentar uma pesquisa, que fez para o BID junto com especialistas do Instituto do Banco Asiático de Desenvolvimento, na qual é analisado o futuro da vinculação entre Ásia e América Latina. O estudo recomenda um aumento no volume do comércio e dos investimentos entre os dois mundos. Tampouco o economista Guillermo Rozenwurcel, diretor do Centro de Pesquisas sobre Desenvolvimento Econômico da América do Sul (Ideas), vê “pouca viabilidade para a proposta chinesa nos próximos dez ou 15 anos”.

Rozenwurcel afirmou à IPS que “os presidentes deram uma resposta diplomática aos interlocutores chineses para mostrar que escutaram a proposta, mas, enquanto o campo de jogo não se nivelar, o debate sobre um acordo de livre comércio tem pouco espaço”, e que também não há “margem política” para isso. Por outro lado, acrescentou, “há um horizonte desafiante e complexo, mas possível”, para incrementar o comércio, os investimentos e a cooperação científica e tecnológica entre a América Latina e a Ásia.

Segundo o estudo do BID e do Instituto do Banco Asiático de Desenvolvimento, o comércio entre América Latina e Ásia aumentou, em média, 20,5% ao ano desde 2000, e atualmente está em US$ 442 bilhões. Com esse crescimento tão acentuado na última década, a China, principal vendedor do lado asiático, avançou na América Latina até colocar-se como segundo sócio comercial da região depois dos Estados Unidos. Porém, o padrão desse intercâmbio está bastante definido, dizem os especialistas. A grande maioria das vendas latino-americanas para a Ásia é de matérias-primas e grande parte do comércio asiático para esta região é de bens industriais.

A consultoria argentina Abeceb informou que o comércio entre Mercosul e China passou de US$ 10,342 bilhões em 2003 para US$ 77,882 bilhões em 2011, e a perspectiva é que chegue a US$ 200 bilhões em 2016. No entanto, a Abeceb também alerta que nesse mesmo período as compras argentinas de itens industriais brasileiros, como têxteis, bens de capital, plásticos ou produtos farmacêuticos foram deslocadas pela competição chinesa.

Um exemplo é o dos produtos têxteis: 56% das importações argentinas chegavam do Brasil em 2003, e atualmente essa participação caiu para 22,6%. Já as compras argentinas de produtos chineses no mesmo setor passaram de 2% para 34,1%. Quanto aos calçados, a importação procedente do Brasil caiu de 79,2% para 37,5% entre 2003 e 2011, enquanto o acesso chinês ao mercado argentino esse mesmo período nessa área cresceu de 12,6% para 36%.

O presidente da Câmara Argentina da Indústria de Brinquedos, Miguel Faraoni, entende que um acordo de livre comércio entre Mercosul e China “seria muito contraproducente”, e ressaltou que “a competição é impossível pela disparidade nas políticas de cada um. A China produz entre 75% e 80% dos brinquedos que são vendidos no mundo, por isso seria uma luta desigual”.

Faraoni explicou que a participação da indústria nacional de brinquedos no mercado doméstico passou de 10$ em 2002 para 50% atualmente, e que há mais empresas estrangeiras radicadas na Argentina para produzir localmente. “Cresceu a produção, o emprego, o investimento em máquinas e novas tecnologias e estamos exportando 8% do produzido para a região e o mercado latino dos Estados Unidos”, ressaltou. Para Faroni, a indústria argentina pode competir em preço e qualidade com a do Brasil, “que tem as mesmas regras de jogo, mas seria um retrocesso nos avanços dos últimos anos abrir o mercado para a China”, enfatizou. Envolverde/IPS