Uma das principais tarefas que temos hoje no Brasil é a construção de um sistema educacional laico, de qualidade, democrático, igualitário, que responda aos anseios e necessidades da população e que promova o desenvolvimento cultural e social do país e o necessário aumento da produção de bens e serviços.
Para isso, não adianta apenas enfrentar um ou alguns dos muitos e graves problemas do nosso sistema educacional. Precisamos enfrentar todos os problemas simultaneamente, pois a superação de uns depende da superação de outros. Afinal, como melhorar e aumentar o ensino médio, por exemplo, sem aumentar e melhorar o ensino fundamental que o antecede ou sem formar professores no nível superior, este último dependente dos concluintes do próprio ensino médio? Como aumentar e melhorar a educação infantil sem formar profissionais especializados para isso? Como formar bons professores sem corrigir as enormes distorções do ensino superior? Ou seja, todos os problemas educacionais estão ligados entre si e o enfrentamento deles precisa ser feito globalmente. Se hoje os problemas se retroalimentam negativamente, precisamos fazer com que suas soluções passem a se retroalimentar positivamente.
Precisamos melhorar cada nível e modalidade educacional
A educação infantil é primordial para o desenvolvimento integral das crianças, como sua socialização, o desenvolvimento de sua personalidade, a ampliação de seu universo, o desenvolvimento de linguagens, entre tantas outras coisas. Essas funções devem ser cumpridas respeitando as identidades culturais e o ambiente em que vivem as crianças. Tarefas como essas não podem ser feitas dentro de um esquema que entenda a creche como um local onde as crianças são depositadas para que os pais ou responsáveis possam trabalhar, como é tão comumente dito até mesmo por pessoas responsáveis pela elaboração e execução das políticas educacionais. E para que possamos responder às necessidades das crianças, são necessários profissionais bem formados, infraestrutura adequada e projetos pedagógicos corretos e bem executados. Esses são alguns passos fundamentais para que, já nos primeiros anos, a educação comece por um bom caminho.
O nosso ensino fundamental é ruim e só está universalizado em seu ingresso, talvez apenas no primeiro dia de aula do primeiro ano escolar. A partir daí, começa o terrível processo de exclusão escolar. Universalizar o ensino fundamental até o último ano é uma tarefa que já deveríamos ter executado há um bom tempo. Aumentar o número de horas de permanência nas escolas e dar atenção adicional e adequada àquelas crianças que dela necessitem são coisas fundamentais a serem feitas. Necessitamos, também, de escolas com infraestrutura adequada, professores bem formados e com condições de trabalho.
A atual realidade brasileira (como a renda per capita ou o fato de que a enorme maioria da população mora em regiões urbanas ou próximas a elas) oferece as condições necessárias para que tenhamos um ensino médio praticamente universalizado até sua conclusão, o que, infelizmente, estamos longe de atingir. Essa é outra das tarefas que o país deve cumprir rapidamente. Não fazer isso implica manter ou mesmo intensificar nossa profunda crise social e não fornecer os meios necessários para que nossos jovens adultos possam tanto gozar dos plenos direitos de cidadania como darem suas contribuições para a formação da força de trabalho do país. Mas não podemos aceitar um ensino médio que responda às demandas de um “mercado de trabalho”, não apenas porque devemos repudiar uma ideologia que trata pessoas como mercadorias – mercadorias que sabem trabalhar – mas porque, também, ao responder a demandas imediatas estaremos substituindo a educação por um treinamento que, rapidamente, se tornará defasado e anacrônico.
O ensino superior apresenta um nível de privatização que está contribuindo, e muito, para levar sua qualidade a patamares inacreditavelmente baixos. Essa privatização rebaixa as expectativas que a população, os estudantes e os professores do ensino médio têm daquilo que seja uma universidade, o que favorece ainda mais a aceitação de um ensino superior rebaixado. Esse é um círculo vicioso que precisa urgentemente ser rompido. Para isso é necessário enfrentar energicamente projetos como a privatização e o ensino a distância, entre outros. Tais projetos, se de um lado são aceitos por causa do rebaixamento das expectativas, de outro lado reforçam o próprio rebaixamento.
Há uma grande dívida acumulada para com todas aquelas pessoas que foram abandonadas no meio do caminho educacional – ou que nem sequer tiveram chance de começar a percorrê-lo – ao longo do nosso desastrado passado. Precisamos pagá-la. E isso não pode se resumir apenas a programas de alfabetização: é necessário um programa educacional complementar que forneça, ainda que tardiamente, as oportunidades perdidas por essas pessoas.
Para cumprir essas e todas as demais tarefas, precisamos de professores bem formados, bem remunerados e respeitados pela sociedade, além de escolas que ofereçam as necessárias condições de trabalho: escolas onde estudar e ensinar sejam atividades agradáveis.
Precisamos de instituições educacionais capazes de fazer aquilo que esperamos delas
As condições adequadas de ensino e aprendizagem nas escolas dependem de infraestrutura adequada (coisas como laboratórios didáticos e bibliotecas são praticamente inexistentes), salas com número razoável de alunos e, fundamentalmente, de professores preparados e com tempo para realmente se dedicarem a seus estudantes.
A frequência escolar implica despesas diretas e indiretas bastante altas e, muitas vezes, fora do alcance das famílias. Esse é um dos fatores, em todo o mundo, a intensificar o abandono escolar. Assim, precisamos de instrumentos de gratuidade ativa, que compensem essas despesas e transformem a escola pública em uma escola gratuita de fato, para todos, independentemente da renda familiar dos escolares. Programas de gratuidade ativa, além de alimentação, transporte e materiais escolares gratuitos, devem incluir outros aportes materiais, inclusive na forma monetária. Afinal, a frequência escolar não apenas impede ou dificulta muito as eventuais atividades econômicas desenvolvidas pelos estudantes, como, também, impede que eles forneçam suportes familiares – como cuidar da casa, de idosos ou de outras crianças – para que outras pessoas trabalhem. Se queremos eliminar a evasão escolar e melhorar as condições de estudo e desempenho dos alunos, precisamos tirar essa barreira de seus caminhos.
Nosso sistema de ensino é discriminador, tratando diferentemente ricos e pobres, o que é totalmente inaceitável em um país que se pretende republicano. Apenas um sistema educacional público – em todos os níveis – é capaz de alterar essa realidade perversa. Programas de subsídios a entidades privadas de ensino, tão em moda nos países mais vitimados pelas políticas neoliberais, em lugar de compensarem a ausência do setor público, como se afirma para justificá-las, fomentam instituições que se beneficiam dessa ausência, fortalecendo-as.
O ensino superior deve ser distribuído entre as várias áreas geográficas, de conhecimento e de formação de profissionais, dentro de um planejamento que responda às necessidades do país, respeite as vocações das diferentes regiões, promova o desenvolvimento social e viabilize o aumento da produção de bens e serviços. Apenas um sistema público consegue preencher essas condições.
Ideias como o ensino a distância, subsídios diretos e indiretos à educação privada, escolas pautadas por avaliações e punição a professores, entre tantos outros modismos, são coisas incompatíveis com uma escola de qualidade referenciada na sociedade.
O real projeto educacional brasileiro
Uma mudança significativa do sistema escolar não é alguma coisa que se consiga em pouco tempo. Afinal, ela envolve processos de formação de pessoas e isso é alguma coisa que se mede na escala de vários anos. Como essa escala de tempo está além das durações típicas de mandatos políticos, é mais fácil fazer promessas e propostas irrealistas do que investir em projetos educacionais consistentes.
Quando essas promessas e propostas se mostrarem não cumpridas, os detentores do executivo já serão outros e os novos ocupantes dos cargos responsáveis pela educação poderão fazer propostas equivalentemente irrealistas, sempre se descolando das gestões anteriores, mesmo se pertencendo a um mesmo partido político. Um exemplo marcante dessa estratégia é encontrado no Estado de São Paulo, governado pelo mesmo partido há quase 20 anos (ou mesmo mais, se considerarmos que pessoas pertencentes ao mesmo grupo político se alternam na ocupação de cargos no poder executivo estadual há três décadas), sem que se tenha observado um conjunto sólido de indicadores educacionais que sugira algum progresso consistente, mas tendo sempre em pauta algum projeto salvador. Em resposta a qualquer crítica de grande escala que se faça, sempre se pode chamar atenção para algum pequeno detalhe que pareça ter melhorado e usá-lo para esconder o todo. Ou, ainda, minimizá-la e tirar da manga algum projeto, existente ou não, que vai resolvê-lo.
Com uma mesma linha política no comando, embora há menos tempo, a situação em nível federal não é muito diferente: a existência de uma miríade de indicadores educacionais sempre permitirá encontrar um ou outro que pareça mostrar algum progresso e usá-lo para ofuscar a população; e a enorme quantidade de projetos sempre permite que se ache algum que, “em breve”, solucionará qualquer problema que apontemos.
Assim, é necessário ficarmos atentos o tempo todo e denunciar rápida e veementemente cada um dos muitos projetos demagógicos, ou simplesmente falsos, sempre plenos de palavras e frases de efeito e vazios de conteúdo e de orçamento, bem como aqueles que os apresentam. Se quisermos saber quais são, de fato, os projetos educacionais brasileiros, o melhor é consultar a realidade do que está acontecendo – ela é resultado do real projeto em andamento – e não os discursos.
Conhecemos os problemas e as soluções
Nós temos informações suficientes para localizar em todo o território brasileiro quais são os problemas educacionais em cada um de seus níveis e modalidades. Com os levantamentos feitos pelo Inep e pelo IBGE, se necessários complementados por informações coletadas por outros órgãos nacionais e estaduais, sabemos onde estão as escolas e os professores, quantos são os analfabetos, qual a evasão escolar em cada canto do país e em cada nível de ensino, quais os recursos destinados à educação em cada município, qual é e qual deveria ser a relação alunos por professor em cada nível de ensino, qual a remuneração dos professores e quanto deveria ser para que pudessem se dedicar à tarefa que têm, qual a deficiência de cada escola. Sabemos, também, onde estão as instituições de ensino superior, suas características, deficiências, qualidades e vocações. Enfim, temos todos os detalhes necessários para realmente desenvolver nosso sistema educacional. E o país tem recursos para isso, ainda mais após quase uma década de superação da longa crise econômica que se iniciou ainda no período ditatorial e se prolongou pelo período mais agudo de implantação do neoliberalismo. Não há, portanto, nenhuma justificativa objetiva para não mudarmos nossa realidade educacional. Se não o fazemos, não é por desconhecimento ou impossibilidades materiais.
Neste momento, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, constituída para analisar a proposta do Plano Nacional de Educação encaminhada pelo Executivo, aprovou investimentos crescentes em educação pública, que devem atingir, no mínimo, 7% do PIB no quinto ano de sua vigência e 10% no décimo ano. Os prazos são longos e os valores estão aquém daquilo que necessitamos. Mas não podemos considerar isso uma derrota. Esses valores, embora insuficientes para viabilizar nossos sonhos, podem ser suficientes para afastar nossos pesadelos, e abrem uma janela que, se soubermos aproveitar, pode nos oferecer uma oportunidade única na história do país para construir um sistema educacional cujos frutos serão colhidos – prazerosamente – em um tempo não excessivamente longo.
Essa proposta deve ainda ser apreciada pelo Senado, mas há riscos. A direita, formada principalmente pela elite econômica, que educa seus filhos com investimentos que superam, às vezes em muito, R$ 15 mil ou R$ 20 mil ao ano apenas com mensalidades escolares, e bem mais do que isso se forem computadas outras atividades – como cursos de línguas estrangeiras, viagens culturais e educativas, aulas particulares, transporte escolar, materiais educacionais especiais, atividades esportivas, atendimentos psicológicos, etc. – vai criticar, como já está fazendo, inclusive usando rapidamente seus meios de comunicação. Afinal, por que gastar mais do que os R$ 2 mil ou R$ 3 mil por ano, como se faz hoje, com a educação daqueles que não são da elite? Até isso parece muito aos olhos dela.
Se com a aprovação das emendas à proposta de PNE não tivemos uma grande conquista, evitamos um retrocesso e avançamos em direção de uma melhor realidade financeira para a educação pública: que isso sirva para nos indicar como continuar a luta. Precisamos enfrentar as tentativas de desqualificar as dotações para a educação em termos de percentual do PIB e, também, dos valores, ainda que insuficientes. Dirão, como já estão dizendo, que 7% ou 10% é muito dinheiro, quando sabemos que o que importa é a diferença do que se aplica hoje e o que se aplicará no futuro, o que, certamente, não é muito. Argumentarão com o impacto negativo disso na economia, apesar de sabermos que educação tem impacto positivo na produção de bens e serviços. Falarão do risco de crise, quando o aumento dos recursos para a educação só virá no futuro e estará abaixo do crescimento do próprio PIB até lá e ele mesmo, o aumento dos recursos, provocará um crescimento do próprio PIB. Ressuscitarão o discurso “dinheiro tem, o problema é de gestão”, quando os que dizem isso jamais colocariam suas crianças em escolas cujos investimentos são da ordem de R$ 200 a R$ 250 por mês e por criança, e cujos professores têm um piso salarial, por 40 horas semanais de trabalho, de R$ 1.451,00.
Nossa tarefa é manter e intensificar a luta.
* Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP e foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.