Mais estímulo ao desmatamento

Sobre o texto do novo Código Florestal que tramita no Senado, o advogado André Lima tem uma opinião convicta: “o projeto facilita a vida e cria um ambiente de estímulo aos novos desmatamentos ao permitir, por exemplo, que quem desmatar, depois da entrada em vigor da lei, vai poder compensar fora do Estado”. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line ele expõe os principais problemas jurídicos do projeto de lei do Código Florestal, bem como o relatório sobre ele elaborado pelo senador Luiz Henrique (PMDB/SC).

Segundo André, “áreas de preservação permanente, que são as margens de rios, de nascentes, terrenos com grande declividade, áreas de risco, topos de morro que foram desmatados ilegalmente e ocupados ao longo dos últimos dez ou 15 anos poderão ser regularizados de forma ágil, simples e sem nenhum tipo de compromisso com a recuperação dessas áreas”. Outro problema apontado por ele é a entrega para os Estados da responsabilidade por definir o que se entende por atividades de utilidade pública e interesse social com baixo impacto e que poderão ser consolidadas. “O que se cria com isso é um sentimento de que a impunidade vai reinar e a pressão sobre os técnicos dos órgãos ambientais será tão grande, que vai ser muito difícil operar a legislação”. O advogado conclui afirmando que “nós somos favoráveis a um novo Código Florestal, que seja moderno, atualizado, mas queremos um código que seja florestal, cuja finalidade seja proteger e recuperar onde precisa ser recuperado. Para isso precisamos da ajuda e da mobilização da sociedade”.

André Lima é advogado formado pela Universidade de São Paulo (USP), assessor de políticas públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e consultor jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia o projeto de lei do Código Florestal aprovado na Câmara dos Deputados? Quais os principais pontos problemáticos?

André Lima – A avaliação que faço é muito negativa. O projeto como um todo tem problemas graves e de diferentes níveis. No geral, temos três grandes problemas. O primeiro é que o projeto anistia crimes e infrações ambientais/ florestais acontecidos até julho de 2008, de forma generalizada. Ele criou uma figura chamada “área rural consolidada” que procura acobertar uma série de ilegalidades ocorridas até bem recentemente, dando a elas a oportunidade de se manterem como estão. Áreas de preservação permanente, que são as margens de rios, de nascentes, terrenos com grande declividade, áreas de risco, topos de morro que foram desmatados ilegalmente e ocupados ao longo dos últimos dez ou 15 anos, poderão ser regularizados de forma ágil, simples e sem nenhum tipo de compromisso com a recuperação dessas áreas. Este é um primeiro problema grave e que se mantém após aprovado na Câmara dos Deputados e agora depois da votação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Estados definidores

O segundo problema é que foi aprovada na Câmara uma emenda, conhecida por “Emenda 164”, que entrega para os Estados a responsabilidade de definir o que se entende por atividades de utilidade pública e interesse social com baixo impacto e que poderão ser consolidadas. Hoje, a regra em vigor diz que área de preservação permanente não pode ter desmatamento nem ocupação, excetuados os casos de utilidade pública, interesse social e de baixo impacto, que são previstos em resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Essa determinação do Conama passou por debate técnico, transparente, ao longo de mais de um ano de reuniões abertas com a participação da sociedade, em discussões públicas. O problema é que, agora, ela vai passar a ser definida ou pelos Estados ou por um decreto do governo federal, sem nenhum tipo de debate público, o que pode fazer surgir uma pressão forte para acrescentar a essa lista de empreendimentos uma série de atividades que não são nem de utilidade pública, nem de interesse social, e tampouco de baixo impacto. Então, estão sob risco essas áreas de preservação permanente.

O terceiro problema grave é que o projeto facilita a regularização de novos desmatamentos. Ele cria algumas condições que permitem que quem desmatar daqui para a frente terá facilidades para se regularizar. Isso vai estimular novos desmatamentos.

IHU On-Line – Do ponto de vista jurídico, que tipo de inconstitucionalidade há no projeto de lei deste novo Código Florestal?

André Lima – Primeiro, temos esse problema de passar para os Estados a competência para definir o que são atividades de utilidade pública e interesse social (porque, com isso, se está ferindo o princípio do pacto federativo, ou seja, nós temos uma norma com abrangência nacional, com regras nacionais, e se estabelece a possibilidade das exceções dessa regra serem definidas pelos Estados, quebrando, assim, a regra nacional). Então, temos aí um problema relacionado à questão de competências que está diretamente ligado ao princípio geral do pacto federativo. Se é uma regra nacional, cuja competência para definição dos parâmetros gerais é do ente federal, da União, não se pode delegar aos Estados a oportunidade de estabelecer exceções à regra, porque daí se gera uma guerra, como a fiscal, com cada Estado querendo definir isenções tributárias e, com isso, gerando uma guerra entre os Estados para atrair investimentos. O mesmo vamos ter no campo ambiental, com Estados estabelecendo concessões, permissões, flexibilizações na legislação para facilitar a vida dos seus produtores rurais, padronizando por baixo a questão ambiental.

A proibição de retrocessos

Outro princípio geral, mais amplo do direito, muito aplicado nas questões sociais (na Constituição a questão ambiental está dentro da área social), é o princípio da proibição de retrocessos. Temos um avanço, uma evolução gradativa, cumulativa da legislação social e ambiental e, de repente, temos um projeto de lei que retrocede significativamente em relação a parâmetros importantes e a fundamentos de proteção ambiental que estão ligados diretamente às condições de vida e à qualidade de vida, à saúde do cidadão, à segurança ambiental. Portanto, existe um princípio geral de que a legislação não pode retroceder, muito menos da forma como tem sido feita, sem fundamento. Isto se reflete em vários dispositivos da legislação. Eu citei três questões gerais que afetam a legislação, mas elas se desdobram em vários dispositivos da lei. A própria presidente Dilma, durante a campanha, se comprometeu em vetar dispositivos que sinalizem a anistia e novos desmatamentos. O problema é que o projeto foi desenhado de tal forma que esses problemas se concretizam em vários artigos da lei. Portanto, fica difícil inclusive para a presidente da República depois vetá-los e cumprir seu compromisso.

IHU On-Line – Em que sentido o relatório para o Código Florestal na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aumenta a instabilidade jurídica?

André Lima – Ele aumenta a instabilidade jurídica porque o propósito da criação deste conceito de área rural consolidada dado pelos parlamentares da base ruralista é exatamente de criar a segurança jurídica de que tudo que foi feito ficará como está, portanto, o produtor rural poderá continuar produzindo nas áreas que foram desmatadas. O que eu tenho dito é que estão conseguindo exatamente o contrário, porque ao estabelecer esse conceito de área consolidada e delegar aos Estados por meio dos seus programas de regularização ambiental a responsabilidade de definir o que fica e o que não fica, significa que vamos abrir para 27 programas estaduais de regularização ambiental. Ao fazer isso, abre-se o leque de possibilidades de forma tão grande, sem critérios, que já não sabemos mais que tipo de situação vai poder ficar ou não. Vai depender do técnico de plantão e do órgão ambiental em questão. O que se cria com isso é um sentimento de que a impunidade vai reinar e a pressão sobre os técnicos dos órgãos ambientais será tão grande, que vai ser muito difícil operar a legislação.

IHU On-Line – Como o Código Florestal pode funcionar, na prática, considerando que cada Estado poderá ter uma regra diferente no sentido de definir as atividades que podem ou não ser mantidas em áreas de preservação permanente?

André Lima – No relatório que está na Comissão de Constituição e Justiça, o senador Luiz Henrique recuou, em parte, dessa proposta de pulverização das competências. Os critérios para definir o que é utilidade pública e interesse social de baixo impacto seriam definidos, pelo texto dele, por um decreto federal. Mas o problema é que o Artigo 8º, que é o que define como serão regularizadas as áreas ditas consolidadas, abre para os planos de regularização ambiental definirem essas condições. Então, cada Estado vai regulamentar o seu plano e vai definir o seu critério. Teremos potencialmente 27 decretos estabelecendo seus programas de regularização ambiental para as propriedades rurais, com diferentes parâmetros. Isso vai dar poderes muito grandes para os órgãos ambientais.

IHU On-Line – Qual é a postura do projeto de lei para o Código Florestal em relação aos desmatamentos?

André Lima – O projeto facilita a vida e cria um ambiente de estímulo aos novos desmatamentos ao permitir, por exemplo, que quem desmatar, depois da entrada em vigor da lei, vai poder compensar fora do Estado. Se uma pessoa faz um desmatamento no Rio Grande do Sul, ela pode compensar com uma área de Mata Atlântica na Bahia, onde o hectare pode estar valendo dez vezes menos. Infelizmente, depois do desmatamento a terra acaba sendo valorizada, pois ele ainda é visto como benfeitoria. Não tenho dúvidas de que, da forma como está, o projeto vai estimular mais o desmatamento. Acho fundamental que a sociedade organizada, e o cidadão que tem alguma consciência e interesse nesse tema e se preocupa com o meio ambiente, se agregue à campanha que vem sendo desenvolvida, que é contrária a esse texto. Ajudem nos abaixo-assinados, nas campanhas que estão circulando pela internet, procurem no site www.florestafazadiferenca.org.br. Nós somos favoráveis a um novo Código Florestal, que seja moderno, atualizado, mas queremos um código que seja florestal, cuja finalidade seja proteger e recuperar onde precisa ser recuperado. Para isso precisamos da ajuda e da mobilização da sociedade.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.