Manifesto antiamianto no Brasil evidencia silêncio epidemiológico

No dia 9 de maio, foi entregue à Secretaria de Direitos Humanos da presidência da República (SDH-PR) um manifesto pró-banimento do amianto no Brasil. O documento, elaborado por membros da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), reunidos em São Paulo durante o V Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, exige, ainda, que a Secretaria acompanhe com atenção o caso da engenheira e auditora-fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo, Fernanda Giannasi. Frente à sua luta pelo banimento do amianto no país, ela vem recebendo ameaças de morte por meio de cartas postadas, a contento, por um departamento da Universidade de Berlim, na Alemanha. De acordo com o manifesto, as cartas, além de fazerem clara apologia à continuidade da exploração industrial da fibra de amianto, foram escritas em linguagem agressiva e contêm selos nazistas originais.

O amianto, nome genérico dado a um grupo de minerais – a crisotila, variedade vibrosa do grupo das serpentinas, e os minerais fibrosos do grupo dos anfibólitos: crocidolita, amosita, antofilita, actinolita e tremolita –, é um caso emblemático da supremacia econômica sobre a saúde pública e o bem-estar social, haja vista que, apesar de ser um material de comprovado potencial cancerígeno, continua sendo produzido em larga escala em diversos países, inclusive no Brasil, onde, de acordo com dados da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea) publicados pela revista Caros Amigos (ano XIV, nº 158), produz-se, em média, 250 mil toneladas do mineral, número que lhe confere um lugar entre os cinco maiores consumidores e fabricantes de amianto do mundo. Segundo a matéria, intitulada Amianto, o inimigo fatal do teto ao lado, o mineral é empregado em mais de três mil produtos, como fibrocimento (típico de telhas e caixas d’água), além de pastilhas e lonas para freios. Tais materiais, no entanto, são destinados, majoritariamente, às populações mais carentes de países em desenvolvimento, fenômeno que as tornam mais expostas e, por isso, mais vulneráveis aos riscos de contaminação.

De acordo com René Mendes, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em um relatório elaborado a pedido do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os principais danos à saúde relacionados à exposição ao amianto são a asbestose, nome dado à pneumoconiose (deposição de poeiras no pulmão e reação tissular que ocorre na sua presença), câncer de pulmão, mesotelioma (tumores, benignos ou malignos, de origem mesodérmica, que surgem na camada de revestimento das cavidades pleural, pericárdica ou peritoneal), e o derrame pleural (acúmulo de líquido no espaço pleural). O desenvolvimento dessas doenças, ademais, caracteriza-se por ser lento e silencioso, visto que os primeiros sintomas podem se manifestar até 50 anos depois do primeiro contato com o mineral.

Entretanto, o motivo pelo qual a produção do amianto continua sendo legitimada por empresas como a Eternit é o de o mineral apresentar algumas propriedades excepcionais, encontradas em nenhuma outra fibra sintética, que favorecem sua utilização industrial, garantindo às empresas que a produzem alta rentabilidade. No Brasil, a multinacional belgo-suíça Eternit declarou que seu lucro no terceiro trimestre de 2009 chegou à casa dos R$ 17 milhões, sendo que a venda de produtos acabados de amianto chegou a 207,2 mil toneladas. Além de ser leve, barato e facilmente transportável, a fibra do mineral apresenta baixa condutividade térmica, resistência à água e a produtos químicos e micro-organismos, e afinidade com cimento, resinas e ligamentos plásticos.

Caso Fernanda Giannasi

Fernanda Giannasi começou a estudar os riscos do amianto em 1985, quando decidiu pesquisar doenças adquiridas no ambiente de trabalho. A partir desta investigação, a auditora-fiscal descobriu diversos trabalhadores com males relacionados à exposição ao mineral. Todavia, diferentemente do que ocorreu na Itália em dezembro de 2009, quando, de acordo com Anelise Sanchez, autora da matéria publicada pela Caros Amigos, o tribunal de Turim iniciou o julgamento do maior processo trabalhista europeu, fruto de uma ação coletiva movida por quase três mil partes civis contra os ex-proprietários da Eternit, a maioria das vítimas do amianto descobertas por Fernanda no Brasil tinha medo de processar ou denunciar as empresas para as quais trabalharam.

Segundo o manifesto elaborado pela Abrasco, tal postura por parte dessas vítimas contribui para que as doenças relacionadas à exposição à fibra do mineral continuem socialmente invisíveis. Muitas vezes, relatam os signatários do documento, isto ocorre por causa da ocultação de informações pelas indústrias, que, inclusive, promovem sua própria ocultação diante da mídia. Dentre os instrumentos utilizados por essas empresas para tais fins estão acordos extrajudiciais firmados com as vítimas contendo cláusulas “como a do sigilo e a de deixarem de cumprir os compromissos firmados se forem impedidas de continuar sua atividade utilizando substâncias químicas nocivas, como o amianto”.

Hoje, cerca de quatro mil acordos extrajudiciais foram firmados entre as empresas Eternit e Brasilit e seus ex e atuais funcionários, sendo que somente parte destes casos foi registrada junto à Previdência Social e ao Sistema Nacional de Agravos Notificáveis do Ministério da Saúde (Sinan-MS). Frente a esta realidade, Fernanda e seus colegas de pesquisa fundaram o Grupo Inter-Institucional sobre o Amianto (GIA), entidade comprometida em denunciar irregularidades em empresas instaladas no Estado de São Paulo. De acordo com o relatório “Na Linha de Frente: Defensores dos Direitos Humanos no Brasil 2002-2005”, elaborado pelas organizações Justiça Global e Terra de Direitos, o GIA também preparou um regulamento que se propunha a monitorar o uso do mineral no país por meio do acordo 162 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do “uso de amianto em condições seguras”.

De acordo com o relatório, graças às ações de Fernanda, 2.500 vítimas de doenças relacionadas ao amianto foram identificadas no Brasil. Entretanto, seu engajamento profissional e social junto aos trabalhadores vítimas do mineral vem despertando antipatia por parte de empresas que exploram e manufaturam produtos de amianto. Segundo o manifesto, nas mais recentes ações em busca da criminalização de seu trabalho, “encontram-se as reiteradas tentativas de removê-la de sua função na Auditoria Fiscal na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo”, como o processo ajuizado pela Sama, do grupo empresarial Eternit, na 14ª Vara Federal de Brasília, que busca “AFASTAR A AUDITORA FISCAL DO TRABALHO FERNANDA GIANNASI DA FISCALIZAÇÃO DA AUTORA NO TOCANTE ÀS OPERAÇÕES CONCERNENTES AO AMIANTO” e que, felizmente, teve no dia 18 de maio a tutela antecipada requerida indeferida.

De acordo com o documento, responsáveis pela exportação de 65% da produção nacional de amianto in natura para a Ásia, as empresas Transportadora Cortes Ltda. e Cortes Armazéns, do Guarujá, também buscaram afastar a auditora fiscal de sua função. Em um primeiro momento, obtiveram êxito junto à Justiça Federal de Santos, que determinou que a engenheira se abstivesse de inspecionar as dependências da empresa. Contudo, tal decisão foi reformada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região de São Paulo. Não satisfeitas com as derrotas obtidas nas instâncias superiores do Judiciário, as empresas dedicadas à exportação do amianto buscaram novamente amparo na primeira instância da Justiça Federal de Santos, solicitando à Polícia Federal a instauração de um inquérito para apurar um possível desvio de conduta da servidora pública, caracterizado por “abuso de poder”.

Infelizmente, a autoridade policial local, Dr. Cassio Luis Guimarães Nogueira, foi levada a erro pelas empresas e indiciou a servidora, mesmo informado sobre a decisão do Tribunal Regional Federal. Resta agora ao Ministério Público Federal de Santos analisar a conclusão do inquérito policial e decidir se denuncia ou não a servidora. Se isto ocorrer, Fernanda Giannasi terá mais uma vez de ir aos Tribunais para se defender das levianas acusações do lobby do amianto, cujo objetivo é um só: manter o silêncio epidemiológico acerca do mineral.

* Rodrigo de Oliveira Andrade é jornalista, www.poterkin.blogspot.com e www.espacocult.wordpress.com.

** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.