Márcio R. Lourenço não teve tempo de se internar

Rapaz foi morto pela guarda municipal de Atibaia. A prefeitura da cidade foi condenada por violação de direitos humanos.

Ilustração: Carlos Latuff.

O negro Márcio Rodrigues Lourenço, 25 anos, morreu na tarde de 19 de agosto de 2008. Ele e outro rapaz, Denis Sousa, invadiram um imóvel vazio no bairro Estância Lince, de classe média alta, em Atibaia, a 65 quilômetros da capital paulista. No local, antes de soar o alarme, furtaram torneiras metálicas. Cercados pela polícia, tentaram fugir pelos fundos da casa, que dava num matagal.

Agentes da guarda municipal estavam de tocaia numa rua próxima e surpreenderam os rapazes à bala. Segundo relatos, os dois tentaram a rendição. Atingido por um tiro nas costas quando tentou subir um muro na fuga, Márcio morreu na Santa Casa da cidade. Denis conseguiu fugir e posteriormente se apresentou à polícia.

Nascido no Paraná, Márcio tinha mãe, irmãos e namorada. Trabalhava como pedreiro e jardineiro. E o fim de sua história trágica tem a ver com a dependência de crack, iniciada em 2005.

Em 2006, foi preso por furtar fios de cobre para comprar a droga e cumpriu pena em Hortolândia, na região de Campinas. No ano seguinte, voltou para Atibaia e, dois anos depois, foi executado pelo poder público, como aponta a justiça.

Para sustentar a dependência da pedra, Márcio praticava pequenos furtos, a maioria das vezes em casas inabitadas e construções para alugar. Nas duas vezes em que foi preso, não portava armas.

Também não possuía nenhum registro de violência. A guarda municipal – vinculada à secretaria de segurança pública da prefeitura – alega que Márcio estava armado e que atirou primeiro. A tese, muito comum entre as polícias brasileiras, foi a da legítima defesa.

Os jornais da cidade, na maioria, engoliram a versão oficial sem apurar e checar o episódio. Por exemplo, a edição do Atibaia Hoje, de 23 de agosto de 2008, estampou a foto do rapaz morto na capa. A manchete sugeria que “assaltante atirou na guarda municipal” e “foi morto no revide”.

A Justiça discorda

A justiça não concorda com a versão da guarda municipal, tampouco corrobora com o que publicou o jornal. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve sentença contra a prefeitura de Atibaia por violação de direitos humanos. Na decisão, confirma a execução e aponta que o boletim de ocorrência foi forjado, já que o processo judicial desmente que o rapaz teria sido morto após trocar tiros com os agentes.

O acórdão do TJ-SP, baseado em decisão unânime dos desembargadores, preserva a determinação de primeira instância do juiz Marcos Cosme Porto, da Comarca de Atibaia, de 25 de março de 2010. A ementa da decisão aponta responsabilidade objetiva do poder público em morte provocada por tiros disparados pela guarda municipal com legítima defesa não comprovada.

Na esfera cível, a mãe do rapaz, Olinda Rodrigues Lourenço, pediu indenização. “O Márcio tinha defeitos. Não digo que não furtou as torneiras, mas ele nunca andou armado, não era o criminoso que disseram”, desabafa Olinda. “Estava esperando essa decisão. Finalmente saiu”, completa.

Na sentença de primeira instância, o juiz, além de apontar que a vítima faleceu em decorrência dos disparos de arma de fogo da guarda municipal, diz que apenas uma hipótese afastaria a responsabilidade do poder público: a prova séria e convincente de terem os guardas agido em legítima defesa.

Em outra parte da decisão, a sentença indica: “sabe-se que o Estado responde objetivamente pelos danos ocasionados pelos seus agentes no exercício da atividade pública (…) as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Outro ponto que merece destaque é sobre a suposta arma que os guardas alegaram que Márcio portava. Segundo a decisão, ninguém a localizou e não houve trabalho pericial para localizar os projéteis disparados contra os guardas. “A versão dos guardas municipais não poderia ser outra, sobretudo porque estão todos sob suspeita de participação nessa desastrosa e irresponsável ocorrência. Não há efetivamente prova de que a vítima estivesse armada e, diante desse quadro, ainda que em fuga pela subtração, de forma alguma poderiam os agentes ter reagido com disparos de arma de fogo”, ressalta o juiz.

“Se a conduta é legítima, pobre dessa Nação.”

Sobre direitos humanos e o arquivamento do inquérito policial que investigava o caso, a determinação da justiça enfatiza o papel do Estado no respeito aos direitos humanos.

A sentença cita o jurista Dalmo de Abreu Dallari. “Qual é o Estado que se quer?” Dalmo de Abreu Dallari escreveu a notável obra Poder dos Juízes e, ao abordar o respeito aos direitos humanos, foi contundente: “… ponto fundamental é o que se refere à influência das convicções políticas e jurídicas de muitos juízes que, simplesmente, não reconhecem como um dever jurídico o respeito às normas de direitos humanos, ou exigem requisitos formais absurdos quanto à comprovação das violações e da autoria. Há juízes que, por convicção ou interesse pessoal, são cúmplices de governos, pessoas e grupos privados violadores de direitos humanos e, a partir daí, protetores dos agentes diretos da violação”.

O texto prossegue criticando a conduta da guarda e contesta o andamento da investigação do caso. “Não é razoável que tenha sido arquivado o inquérito policial que poderia apreciar melhor a conduta dos agentes municipais, já que não havia prova alguma a respeito da vítima estar armada; ao contrário, a presunção que naturalmente se impõe é de que não estava e, além disso, é inevitável ponderar: Márcio foi morto quando tentava fugir. Se a conduta é legítima, pobre dessa Nação.”

Ainda sobre a legítima defesa alegada, o juiz argumentou que a prefeitura deveria ter demonstrado em juízo a culpa da vítima, mas que, em vez disso, apresentou prova que não pode ser contraposta aos autores. De acordo com a sentença, não há demonstração da legítima defesa e, sem prova convincente, a exclusão de responsabilidade não pode ser acolhida, devendo a fazenda municipal, portanto, responder pelo dano causado pelos agentes.

No final, a decisão aborda a indenização por dano moral e determina valor equivalente a cem salários mínimos à família de Márcio, condenando a prefeitura ao pagamento com correção monetária desde a data do fato (19 de agosto de 2008) e juros legais desde a citação, mais custas judiciais.

Com a decisão na esfera cível, em duas instâncias, a administração municipal tenta recorrer em Brasília, no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Por outro lado, é possível, com atraso de três anos, a instauração de ação administrativa retroativa para que a prefeitura apure internamente a responsabilidade dos agentes.

Além disso, a reabertura do processo criminal foi solicitada, pela organização não governamental Centro Nacional de Denúncias (CND-BR), ao Ministério Público, que arquivou o inquérito justificando não haver provas que constatassem infração por parte da guarda municipal.

Marcos Rodrigues Lourenço, irmão de Márcio, avalia que a sentença, independentemente do valor da indenização, motiva a continuação da luta para punir os responsáveis.

“Nós, da família, nem estamos preocupados com o valor. Essa decisão nos fortalece para pedir justiça, para que os responsáveis tenham a culpa investigada pela prefeitura e para que respondam criminalmente. Tenho os jornais da época pintando meu irmão como um bandido perigoso, que atirava em guardas, matérias que expuseram a imagem dele sem a nossa autorização. O Márcio não era nada do que disseram. Tinha uma dependência, estava falando em se internar, mas não deu tempo”, diz Marcos.

* Moriti Neto é jornalista, repórter do Nota de Rodapé.

* Publicado originalmente por Nota de Rodapé e retirado do site da Revista Fórum.