A saída de Marina Silva do PV e a criação de um movimento, atende a razões políticas dela e de seu grupo, mas é também sintoma das graves distorções do sistema político brasileiro.
O sistema tem mais facilidades para abrigar corruptos e clientelistas, do que para manter no seu espaço organizacional políticos que têm ideias e querem mudanças. As formas de expulsão para os que confrontam o sistema são muito mais ágeis do que aqueles que permitiriam extirpar os maus elementos da política. Os partidos estão capturados por facções e grupos que manejam as regras estatutárias e a legislação em seu benefício e para bloquear a competição.
Politicamente, faz sentido criar um movimento transpartidário como instrumento de mobilização e propagação de ideias críticas desse ultrapassado jeito de fazer política e propor uma nova política. Mas tem, também, suas limitações no quadro institucional brasileiro, que dá monopólio de representação aos partidos. A impossibilidade de candidaturas avulsas, impede o acesso de movimentos da sociedade civil ao processo eleitoral. O movimento pode ajudar a eleger candidatos de vários partidos, se tiver força, mas não pode eleger candidatos seus que não tenham partido.
Ao associar a crítica do atual sistema político brasileiro e o enrijecimento dos partidos à questão ambiental como motivações do movimento, amplia seu alcance e escapa do nicho ambientalista.
Foi uma saída prática para o grupo que se reuniu em torno da candidatura de Marina à Presidência. Atende à conveniência de cada um. Os que têm mandato ou pretendem disputar as municipais do ano que vem não se desfiliaram e ficam esperando o que pode acontecer. A criação de um novo partido, ou talvez a negociação com uma legenda disposta a fazer um acordo programático com o movimento, e não pragmático, como foi com o PV. Marina Silva, pessoalmente, está assumindo mais risco político. Está sem mandato e agora fica sem partido. Para ela tudo dependerá da densidade e abrangência que este movimento venha a adquirir.
O problema dos partidos denunciado por Marina não se resume ao controle não-democrático, à captura da estrutura partidária por facções clientelistas ou oportunistas. Já escrevi o que penso do partido como instrumento da política democrática no século 21: aqui e aqui. Falei também da falência dos partidos em entrevista a Amália Safatle para a revista Página 22, em setembro do ano passado.
Destaco de um dos posts publicados aqui no Ecopolitica minha ideia central sobre o partido político na democracia, para dar total transparência ao que penso:
“Hoje, o partido político é uma tecnologia superada, anacrônica da democracia representativa. Uma invenção necessária, talvez, antes do advento da sociedade em rede. Hoje, os partidos certamente pertencem à lata de lixo da história política. Mas, isso resolve pouco. O que substituirá os partidos? Os parlamentos farão mais sentido sem os partidos? A deliberação pode ser melhor que a representação, mesmo com a distribuição tão desigual de conhecimento, informação e educação que temos? É possível deliberação democrática legítima na ausência de educação cívica, ou em uma situação em que ela está em declínio? Cultura cívica, capital social, ou como se queira chamar esse “espírito de cidadania” é condição inarredável para deliberações verdadeiramente democráticas e participativas. Esse sentimento de pertencer, estar junto, ainda que apartados por convicções sobre como realizar as aspirações coletivas, essa noção comum de responsabilidade coletiva são indispensáveis ao que Maquiavel chamaria de “república virtuosa”. Hoje falamos de cidadania plena, de cidadania responsável, consciente de seus direitos e obrigações, capaz de alto grau de auto-governo.”
A prática de formação de coalizões que se cristalizou no presidencialismo de coalizão afeta de maneira profundamente negativa a própria lógica da política brasileira. Há exemplos, em vários países, de processos de formação de coalizões multipartidárias que se baseiam na negociação de programas e políticas e, a partir da aptidão de cada partido, essa composição programática orienta a distribuição de cargos, quase sempre proporcional ao peso do partido no parlamento.
Aqui não se considera a aptidão ou a visão de política pública, mas o apetite partidário e se considera seu peso relativo no Congresso. Dessa maneira, a política se transforma em uma política de cargos e obras, sem qualquer visão estratégica ou sentido para as políticas públicas. Os partidos são tocados como se fossem empresas, para lucro pessoal dos grupos que os controlam, monetário ou político. Ninguém sabe qual é a visão econômica, social e ambiental de qualquer um dos partidos no Brasil. Porque eles não têm visão estratégica ou programática. São apenas máquinas de influência.
Vejam o exemplo da crise atual no ministério dos Transportes. Esta é uma área crítica, na qual a corrupção tem sido recorrente. Os que ocupam o poder no ministério não administram um plano logístico para o país. Gerenciam uma lista de obras e as obras são liberadas e tocadas, não levando em consideração o custo de transportes das mercadorias, a competitividade das exportações, o melhor meio de transporte para cada tipo de carga e distância a ser percorrida. Isso levaria a uma outra distribuição de uso dos modais rodoviário, ferroviário e aquaviário (navegação por hidrovias nos rios, ou, o que é ainda melhor, navegação de cabotagem).
No Brasil quase 65% da carga é transportada por caminhões a diesel, em qualquer distância. No EUA, menos de 30% da carga é transportada por caminhões. Porque essa política de obras, só se interessa por rodovia. O dinheiro circula mais fácil, a obra atende aos currais eleitorais, indepentemente de sua importância estratégica para a competitividade da economia brasileira. O transporte rodoviário é muito mais caro que o ferroviário, por exemplo. Mas ferrovia não é um recurso tão bom para esse tipo de política. No Brasil, pouco mais de 20% da carga é transportada em ferrovias e no EUA, perto de 42%.
As estradas estão sempre em mau estado, esburacadas, porque o asfalto dura pouco. Ele é ralo, para permitir maior fluxo de trocas entre liberações e benesses de algum tipo. A durabilidade do asfalto é política, não é técnica. Ele aparece meses antes das eleições e desaparece meses depois na grande maioria das estradas públicas do país. Nada tem a ver com a eficiência econômica e ambiental da mobilidade de cargas e pessoas.
Em suma, por causa dessa política, o Brasil tem a logística mais deficiente e ineficiente dos países emergentes e ela é insustentável. Economicamente, o transporte no Brasil é caro e ruim. Ambientalmente é uma tragédia: é um sistema movido a óleo diesel de baixa qualidade, por uma frota de caminhões, com muito uso e pouca manutenção, com frete terceirizado. Rodovias são vetores de desmatamento na Amazônia. Como a Br 319, Porto Velho – Manaus, o projeto pessoal do senador Alfredo Nascimento, que acaba de deixar o ministério.
Essa mesma análise pode ser feita para outros setores de políticas públicas no Brasil, como o de energia, de desenvolvimento urbano e vários outros.
A conexão entre a política clientelista, o desenvolvimento sustentável e a qualidade da democracia existe e faz sentido. Essa política impede o desenvolvimento sustentável e reduz dramaticamente a qualidade da democracia.
As críticas de Marina Silva aos partidos não são apenas mágoas pessoais. Eles apontam problemas verdadeiros. Tenho ouvido de outros políticos críticas e queixas semelhantes. Este é um problema que teremos que enfrentar. Dentro ou fora do movimento criado por Marina. Mesmo nos partidos que queiram ter um futuro mais digno. Em outras arenas de exercício da cidadania. Mas teremos que enfrentar, se quisermos mesmo ter desenvolvimento e democracia de qualidade no Brasil.
* Para ouvir o comentário do autor na rádio CBN clique aqui.
** Publicado originalmente no site Ecopolítica.