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Massacre de Bagua desafia a justiça peruana

Alberto Pizango (de pé) fala em uma reunião da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), que preside. Foto: Milagros Salazar, IPS
Alberto Pizango (de pé) fala em uma reunião da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), que preside. Foto: Milagros Salazar, IPS

 

Lima, Peru, 19/5/2014 – O julgamento oral que acaba de ser aberto contra 52 indígenas e mestiços pelo massacre de 2009 na cidade peruana de Bagua põe à prova a independência e a capacidade de fazer justiça dos tribunais do país. A fase oral começou no dia 14, na Sala Penal de Apelações e Litigação Transitória de Bagua, no departamento de Amazonas, e a próxima audiência será no dia 26.

Os acusados são dirigentes e moradores que tiveram alguma participação no enfrentamento entre forças de segurança e manifestantes no dia 5 de junho de 2009, que terminou com a morte de 34 pessoas, 24 policiais e dez civis, e cerca de 200 feridos.

Os indígenas dessa região amazônica há 60 dias ocupavam uma estrada para exigir a revogação de decretos do segundo governo de Alan García (2006-2011), que violavam direitos consagrados na Constituição e ameaçavam a propriedade de seus territórios. Vários desses decretos foram revogados mais tarde. Mas os incidentes ocuparam as manchetes da imprensa nacional e tiveram repercussão fora do país.

O processo começou contra 53 nativos e mestiços. Um deles morreu no ano passado. O restante enfrenta acusações punidas com penas de seis anos de prisão até reclusão perpétua, segundo explicou à IPS um dos advogados defensores, Juan José Quispe, do não governamental Instituto de Defesa Legal (IDL). Até agora, a promotoria não apresentou acusação contra 12 policiais também imputados pelos enfrentamentos, destacou.

Alguns dos indígenas mortos em Bagua. Foto: Cortesia a Fedepz
Alguns dos indígenas mortos em Bagua. Foto: Cortesia a Fedepz

 

Mas chegou a ser pedida prisão perpétua para sete dos 52 civis, entre eles o dirigente indígena Alberto Pizango, presidente da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), que convocou a mobilização amazônica. “Nós acatamos o mandato dos povos”, declarou Pizango à IPS dias antes de começar o julgamento oral. Depois do massacre, Pizango se exilou na Nicarágua, mas regressou em maio de 2010. Os outros acusados que podem pegar prisão perpétua são Santiago Manuim, Héctor Requejo, Ronald Requejo, Danny López, Feliciano Cahuasa e Joel Shimpukat.

Segundo Quispe, desde o começo eram evidentes as irregularidades no processo. A justiça não aceitou o pedido de defesa para interrogar o ex-presidente García e vários dos que foram seus ministros. “A Sala disse que não os citaria porque não eram testemunhas oculares dos fatos. Mas esse é um caso que tem implicações políticas”, afirmou o advogado.

Um aspecto crucial é indagar se o gabinete de ministros sabia que, um dia antes do massacre, os indígenas enviaram uma carta à delegacia de Bagua informando que se retirariam pacificamente da área denominada Curva del Diablo, ressaltou Quispe. Os indígenas afirmam que havia um acordo prévio com os chefes policiais de que, se chegasse de Lima a ordem de despejo seria dado um aviso para que os manifestantes partissem em paz.

Mas, às cinco da manhã do dia 5 de junho, 600 policiais iniciaram o despejo pela força da Curva del Diablo, o trecho da estrada que une a costa com as principais localidades selváticas do norte do país. Inteirados de que a repressão estava causando mortos, os nativos awajun que ocupavam a vizinha Estação de Bombeamento de Petróleo Número 6, decidiram realizar represálias contra um grupo de policiais que estavam no lugar.

Na primeira audiência do julgamento, a Sala Penal não forneceu intérpretes da língua awajun. “Era preciso registrar os nomes completos, local de nascimento, o número de filhos, quanto ganham”, explicou Quispe à IPS. No final, um dos dirigentes nativos, Merino Trigoso, “teve que fazer as vezes de intérprete”, acrescentou. Mas a falta de intérprete determinou a suspensão da leitura da acusação, pois os quase 14 defensores – fornecidos pelo IDL, pelo católico Vicariato de Jaén e pela Aidesep – exigiram que esse documento escrito fosse traduzido para o awajun.

Segundo Quispe, o presidente do tribunal, Gonzalo Zabarburu, incorreu em outra falta ao determinar a prisão domiciliar de um dos acusados, Feliciano Cahuasa, em uma cidade diferente da qual outro juiz já lhe havia determinado. “Esta arbitrariedade afeta o processado, que já realizara os trâmites para acatar a ordem do primeiro juiz e agora deve buscar um novo domicílio para cumprir sua prisão”, afirmou o advogado.

Cahuasa, acusado da morte do major Felipe Bazán durante os incidentes de Bagua, passou quase cinco anos preso sem condenação, quando a lei diz que ninguém pode permanecer mais de três anos nessa condição. A defesa conseguiu que passasse para prisão domiciliar.

O tribunal também incorreu em uma decisão de risco ao ordenar que se trasladasse um dos acusados, Trigoso, para uma delegacia durante um recesso da sessão, em lugar de deixá-lo em uma sala do tribunal até o reinício da audiência. Trigoso saiu custodiado por vários policiais enquanto fora do tribunal uma multidão de indígenas aguardava ansiosa. “Poderia ter ocorrido um fato lamentável por uma absurda decisão dos juízes”, enfatizou Quispe. Mas nada aconteceu.

Uma das primeiras lições que Bagua deixou aos indígenas é a necessidade de “passar do grande protesto para a grande proposta, e da grande proposta para a grande ação, que consiste no exercício pleno da livre determinação dos povos”, afirmou Pizango à IPS. “Os povos nunca mais fecharam estradas, porque agora conhecem a armadilha do Estado peruano. Quem sai para defender a voz dos povos recebe agressão, bala e todo um sistema de desinformação”, ressaltou. Envolverde/IPS