Porto Alegre, Brasil, 3/6/2013 – O cuidado sanitário para os indígenas no Brasil não goza de boa saúde, afirmam especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), missionários, trabalhadores sociais nas comunidades e integrantes dos povos originários. Ida Pietricovsky Oliveira, assessora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) na cidade de Belém, no Estado do Pará, destacou a falta de informação sistemática sobre a saúde dos indígenas, com base em dados coletados por enfermeiros, profissionais e técnicos nas comunidades.
O escritório de comunicação do Ministério da Saúde justificou para a IPS as carências pela fase ainda incompleta da transição da assistência sanitária aos povos indígenas. Em 2010 começou a passagem da gestão da Fundação Nacional de Saúde para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério. Seja como for, a situação dificulta a implantação de políticas públicas que atendam adequadamente as necessidades de cada grupo indígena, com suas características diferenciadas.
“É um problema grave que estamos tentando dialogar com a Sesai”, disse Oliveira à IPS. A forma como são colhidos os dados em cada região é diferente, o que complica obter informações cruzadas, explicou. O Unicef e outras agências da ONU criaram escritórios com equipes multidisciplinares para abastecer o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional e assim melhorar, junto com a Sesai, a nutrição em cada Distrito Sanitário Especial Indígena.
Essa iniciativa começou pelas crianças do povo xavante, no Estado do Mato Grosso, porque essa região registra altos índices de mortalidade por inanição e diarreia. “A ideia é capacitar as equipes para evitar novas mortes. A mortalidade infantil nas áreas indígenas é o dobro da média nacional e a melhoria nos indicadores é muito lenta”, afirmou Oliveira.
O último informe sobre a violência contra os povos indígenas brasileiros do Conselho Indígena Missionário (Cimi), da Igreja Católica, com dados de 2011, incluiu um capítulo intitulado A Desatenção em Matéria de Saúde, que descreve 53 casos de negligência na atenção sanitária em 16 Estados, prejudicando 53 mil pessoas. O Estado do Amazonas tem o maior número de incidências.
O informe se baseia em notícias publicadas em jornais e revistas das diferentes regiões e em relatórios dos missionários. Indica que há uma queixa geral nas comunidades indígenas: o abandono e a falta de profissionais da saúde, de medicamentos, equipamentos, transporte e de assistência.
De norte a sul as necessidades são semelhantes neste país imenso com mais de 195 milhões de habitantes, dos quais, segundo o censo de 2010, 900 mil se declararam indígenas, pertencentes a 305 povos distintos e que falam 274 línguas. Em Dourados no Estado de Mato Grosso do Sul, a proximidade da reserva indígena com a cidade aumentou os índices de alcoolismo, diabete e hipertensão entre os indígenas.
A demarcação das terras dos yanomami, que habitam no norte do país, forçou membros desse povo milenar a deixar de ser nômade, para ficarem confinados em áreas próximas a destacamentos do exército. Como resultado, passaram a se alimentar de comida processada, porque a pesca escasseia em seus assentamentos e a terra é dedicada à plantação. Quando buscam assistência médica nos postos municipais de saúde, enfrentam os preconceitos e a rejeição.
“Lutamos para que cada comunidade retome sua autonomia e seu protagonismo em matéria alimentar”, disse à IPS Sandro Luckmann, membro do Conselho da Missão entre Índios, de igrejas evangélicas. Essas missões trabalham há 30 anos com os caingangues da Reserva de Guarita, entre os municípios de Tenente Portela, Miraguaí e Redentora, no Rio Grande do Sul. O povo caingangue é o terceiro mais numeroso do Brasil e Guarita é seu maior assentamento, segundo o censo de 2010.
Luckmann recordou que a saúde e a alimentação fazem parte de um amplo processo, que passa por encontrar novos meios de produção. “A demarcação das terras não cria as condições para que a comunidade tenha soberania alimentar. Há programas vinculados a um ou outro governo, não a uma política pública estável”, criticou.
Em Guarita, mulheres e homens caingangues devem trabalhar nos frigoríficos das cidades próximas ou como temporários nas colheitas de maçã, cebola ou uva, forçados a viverem em condições precárias em alojamentos coletivos. “Há relatos de que na indústria da carne cabe aos indígenas os piores trabalhos, aqueles que ninguém quer fazer”, contou o indigenista. “Viajam até quatro horas de ônibus para trabalhar oito horas e fazem o trajeto de volta para dormir em suas casas”, acrescentou.
Luckmann recordou que o Artigo 123 da Constituição brasileira estabelece que as demarcações de terras indígenas, que estabelecem os territórios ancestrais, devem garantir sua reprodução física e cultural e a subsistência de suas comunidades. Mas isso não acontece, denunciou. “Ao falar de segurança e soberania alimentar deve-se pensar no espaço territorial que ocupam os indígenas e que as alterações em suas condições de vida produzem deficiências nutricionais e problemas de saúde”, ressaltou.
O caingangue Marcos Antonio Ribeiro, coordenador da Sesai em Guarita, confirmou que as mudanças dos hábitos alimentares tradicionais indígenas por uma dieta menos diversificada e com produtos processados provocou aumento da desnutrição, anemia e da hipovitaminose na reserva. Antes, este povo vivia da produção de milho, abóbora e feijão, e da coleta de produtos silvestres.
Dessa forma, seus integrantes mudaram sua dieta pela facilidade de adquirir os alimentos processados comercialmente, pela falta de terras produtivas e pelo uso indiscriminado de pesticidas, o que fez desaparecer várias plantas autóctones. Ribeiro explicou à IPS que as mudanças alimentares não causaram apenas danos na saúde, mas na cultura dos caingangues, porque há um conjunto de rituais conectados com a alimentação.
Por exemplo, “quando um jovem vai comer farelo de milho, o mais velho da casa bate em todo o seu corpo com suas mãos e o faz tomar antes uma infusão, pois os caingangues acreditam que sem este ritual os jovens enfraquecem e sofrerão câimbras quando adultos”, acrescentou Ribeiro. Antes, os caingangues utilizavam ervas medicinais e agora buscam os profissionais de saúde, que encontram pacientes com diabetes, hipertensão, colesterol e altos níveis de triglicérides.
Ribeiro lamentou que “nos últimos anos há câncer em todas as idades e de todos os tipos entre os indígenas, inclusive entre as crianças”. Formado em nutrição, ele promove o retorno aos conhecimentos tradicionais nas instituições indígenas e nas comunidades. Sua própria mãe morreu por complicações derivadas da diabete e integra uma estatística ainda invisível para as autoridades de saúde. Envolverde/IPS