Nairóbi, Quênia, 15/8/2012 – O atleta queniano David Lekuta Rudisha conseguiu unir por um curto período sua fragmentada nação, ao conquistar a medalha de ouro nos 800 metros rasos e bater o recorde mundial nos Jogos Olímpicos de Londres. No Quênia, as pessoas se reuniram no dia 9 nas casas, nos centros comerciais, em restaurantes, para ver como Rudisha – apelidado de “rei David” – confirmava seu predomínio nessa prova.
Na noite da vitória as diferenças étnicas se diluíram e não foi raro ver comemorando juntos homens e mulheres kalenjin e kikuyu, os dois principais grupos que permanecem se enfrentando, desde as eleições de dezembro de 2007. “Espero que o sentimento de unidade surgido após a vitória de Rudisha impregne todos os aspectos de nossas vidas”, disse à IPS a jovem Samuria Pulley, moradora do assentamento informal de Kibera, em Nairóbi.
Há cinco anos, o Quênia esteve à beira do colapso pela violência pós-eleitoral que deixou quase 1.200 mortos e cerca de 600 mil refugiados. As tensões não se dissiparam porque as “vítimas de violação, agressão, incêndios intencionais e outros crimes aguardam que a justiça seja feita”, denunciou a organização Human Rights Watch (HRW), com sede em Nova York. “Oficiais de polícia que mataram pelo menos 405 pessoas, feriram outras 500 e violaram dezenas de mulheres e meninas, gozam de absoluta impunidade”, diz um informe da HRW divulgado em dezembro de 2011.
Várias personalidades, entre elas o ex-ministro da Educação Superior, William Ruto, o apresentador de rádio Joshua Sang, o atual vice-primeiro-ministro, Uhuru Kenyatta, e o ex-diretor de Serviço Civil, Francis Muthaura, são acusados de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional (TPEI). O início do processo está previsto para 10 de abril de 2013, para alguns, e, para outros, no dia 11.
As tensões étnicas se mantêm vivas em todo o país. A Comissão Nacional de Coesão e Integração, criada para facilitar e promover uma coexistência pacífica entre a população após o conflito de 2007, alertou para a possibilidade de mais violência se o problema não receber atenção. O Serviço Nacional de Segurança e Inteligência informou ao governo, no dia 8 de maio, sobre a existência de fortes indicadores de violência porque o aumento da atividade política tribal derivou em hostilidades étnicas, ao ganhar força a campanha eleitoral para as eleições gerais de março de 2013.
Entretanto, quando Rudisha ganhou sua medalha dourada e impôs nova marca mundial, de 1m40s91, para os 800 metros, o país explodiu de alegria. A população estava decepcionada porque seus legendários corredores de média distância não conseguiram uma medalha de ouro, com exceção de Ezekiel Kemboi, que a ganhou nos três mil metros com barreira.
Mas seu triunfo não despertou o mesmo sentimento de unidade que o de Rudisha porque tem um processo judicial pendente, acusado de ser o responsável por apunhalar uma mulher no dia 27 de junho em Eldoret, na província do Vale do Rift. Kemboi, que obteve a primeira medalha para o Quênia em Londres, pôde competir em liberdade sob fiança. Por isso, a vitória de Rudisha inspirou tanta euforia e unidade.
O sociólogo Gidraph Wairire, da Universidade de Nairóbi, disse à IPS que o esporte pode ajudar a encurtar a distância entre os grupos étnicos. O esporte gera, tanto nos atletas quanto nos espectadores, uma sensação de “bem-estar químico”, que desperta um laço de unidade entre os cidadãos. “No caso dos atletas quenianos, se puder priorizar e aproveitar o poder do esporte, o Quênia poderá reduzir as divisões étnicas, que em qualquer caso também surgem de diferenças menores”, destacou, lembrando que são divisões apenas superficiais, não intrinsecamente permanentes.
Segundo Joyce Nyairo, representante residente da Fundação Ford e especialista em cultura popular do Quênia, este país pode usar o esporte para reescrever sua retórica nacional e forjar uma unidade ainda mais forte com bons resultados. É uma lástima que o governo não crie políticas destinadas a consolidar a unidade nacional incluindo o esporte, afirmou Nyairo, que tem várias publicações sobre questões étnicas vinculadas aos 42 grupos existentes no Quênia.
O impacto do esporte na hora de inspirar unidade supera qualquer outro esforço de conciliação. O triunfo de Rudisha fez precisamente isso, acrescentou Nyairo. “Nosso sentimento de quem somos e do que temos em comum com o outro se ordena e se defende no campo esportivo tal como poderia estar escrito nas constituições ou ser debatido nos parlamentos”, afirmou à IPS.
O esporte pode servir para encurtar distâncias étnicas de infinitas formas, ressaltou Nyairo. “Se nos cobrirmos com as histórias dos atletas, as adotarmos e aprendermos com elas, certamente veremos os contornos sem remendos que unem o Quênia acima das divisões que ameaçam nossa apreciação de um passado e um destino comuns”, explicou. Precisamente este último é o que muitos atletas quenianos desejavam inspirar com sua participação nos Jogos Olímpicos, que terminaram no dia 12.
“Espero que nossos êxitos inspirem uma unidade permanente além da que os quenianos expressam quando nos incentivam”, disse Janeth Jepkosegei antes de viajar para a capital britânica, onde ganhou a medalha de prata nos 800 metros. A violência de 2007 foi um dos episódios mais tristes de sua vida, afirmou. Os quenianos deveriam se dar conta de que a unidade nacional é mais importante do que o orgulho étnico, prosseguiu. “Alguns dos amigos com os quais treino são cubanos, norte-americanos e também etíopes. Não vejo porque meus compatriotas não poderiam romper sua mentalidade tribal e se dar conta de que somos um”, ressaltou.
O treinador dos corredores locais, Julius Kirwa, foi muito criticado pelo desempenho dos quenianos, mas pelo menos conseguiu um de seus objetivos. “Queremos que estes jogos unam os quenianos além da pista. Esse é nosso desejo”, declarou à IPS antes de partir. O desejo de muitos quenianos agora é que o sentimento de unidade alcançado vá além de uma histórica noite olímpica. Envolverde/IPS