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Meninas sul-sudanesas dadas em casamento em troca de vacas

Mulheres da etnia murle. A prática do matrimônio infantil tem apoio em muitas comunidades sul-sudanesas. Foto: Jared Ferrie/IPS

 

Juba, Sudão do Sul, 28/5/2013 – “Nossas filhas são nossa única fonte de riqueza. Onde mais se pode conseguir vacas?”, perguntou Jacob Deng, de 60 anos, originário do Estado sul-sudanês de Yonglei. Essa opinião é compartilhada por muitos habitantes do país. O casamento infantil ainda é apoiado por muitas comunidades do Sudão do Sul, onde as meninas são vistas como uma importante fonte de renda, devido ao dote que a família da noiva recebe.

Segundo o Ministério de Gênero e Assuntos da Infância, 48% das meninas sul-sudanesas com idades entre 15 e 19 anos estão casadas, e algumas contraíram matrimônio quando tinham apenas 12 anos. A Lei de Infância, de 2008, fixa em 18 anos a idade mínima para se casar, e estabelece pena de até sete anos de prisão para quem a viola. Porém, a titular da pasta, Agnes Kwaje Losuba, admitiu que a lei não é cumprida.

O casamento infantil é parte da tradição das comunidades. “Uma vez que uma menina chega à puberdade, já é considerada uma mulher. Então, havendo alguém disposto a pagar muitas vacas (por ela), a darei para casar”, afirmou Deng à IPS.

Biel Gatmai, de 50 anos, do Estado do Alto Nilo, contou à IPS que é a favor do casamento precoce por temer que suas filhas engravidem sem estarem casadas, o que é duramente condenado pela cultura local. “É melhor uma menina casar bem cedo do que mantê-la na casa dos pais e correr o risco dela engravidar. Se seu primeiro filho nasce fora do casamento, quem quiser casar com ela pagará umas poucas vacas”, explicou.

O Sudão do Sul realiza um processo de revisão da Constituição, que inclui a realização de seminários e painéis em todo o país para coletar contribuições dos cidadãos. Nestas discussões o tema do casamento infantil é frequentemente incluído. O presidente Salva Kiir criou uma Comissão de Revisão Constitucional, no ano passado, para avaliar e melhorar a atual Constituição de transição, adotada em 9 de julho de 2011, dia em que o Sudão do Sul ficou independente. Espera-se que a Comissão apresente um rascunho da nova Constituição em dezembro de 2014.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), as mulheres e as meninas continuam sendo particularmente vulneráveis no Sudão do Sul. Depois de uma guerra civil de 21 anos, elas foram vítimas dos piores abusos quanto aos direitos humanos, incluindo violações e sequestros. Estima-se que cerca de dois milhões de pessoas morreram e outros quatro milhões tiveram que fugir antes que um tratado, em 2005, colocasse um ponto final ao conflito e dividisse o Sudão em dois países.

A Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS) expressou preocupação pela situação das mulheres em meio à violência entre os diferentes grupos étnicos do país, que afeta especialmente os civis. Pelo menos 1.600 pessoas morreram em 2011 em combates entre as etnias murle e lou nuer, segundo a ONU. Em abril, a diretora da UNMISS, Hilde Johnson, disse a jornalistas em Juba que as Nações Unidas estavam comprometidas em fazer respeitar os direitos das mulheres, das crianças e dos idosos, que são “particularmente vulneráveis e precisam de proteção”.

Paleki Mathew Obur, diretora da organização local Rede para o Empoderamento das Mulheres do Sudão do Sul, destacou a necessidade de que o tema da idade mínima para casar seja contemplado na nova Constituição. “Várias organizações foram a diferentes Estados e coletaram recomendações para a idade mínima para poder casar. Algumas pessoas dizem que deveria ser 18 anos, outras 25”, contou Obur à IPS.

Por sua vez, Angelina Daniel Seeka, da organização End Impunity, explicou à IPS que a principal causa do casamento infantil é o direito consuetudinário. “Os casamentos precoces, a violência de gênero e muitas outras coisas que as mulheres sofrem se devem ao direito consuetudinário. Por isso devemos fazer alguma coisa a respeito. Espero que nos ocorra algo que possa ajudar as mulheres no futuro”, acrescentou. Ativistas explicam que, como a lei consuetudinária não é escrita, os chefes locais, na maioria homens, a interpretam segundo seu desejo.

Para Lorna James Elia, chefe da organização de mulheres Voice for Change, a nova Constituição deve definir também o direito consuetudinário. “O que estamos dizendo é que há áreas no direito consuetudinário que são muito boas e podem ser mantidas. Mas que os aspectos que são muito discriminatórios, referentes a homens ou mulheres, devem ser abordados”, ressaltou Elia à IPS. No sistema judicial sul-sudanês, o direito consuetudinário, que consiste em muitas leis tradicionais não escritas, é aplicado juntamente com o direito comum. Envolverde/IPS