As crianças erram. Porque são humanas. Mais humanas do que nós, adultos adulterados. Odiamos errar. Queremos a perfeição. E por isso deixamos de aprender com a mesma rapidez com que aprendíamos na infância. Mas os erros revelam verdades. Especialmente os linguísticos.
Uma criança outro dia me perguntou se existe mesmo o tal de abdominável homem das neves. Ouviu algo a respeito num programa de TV sobre o Himalaia. Será abdominável o monstro porque faz abdominais deitado na neve?
Dias desses, uma menina aqui em São Paulo viu dentro de uma estação do metrô uma sala de vidro. Trata-se de um posto tira-dúvidas. Qualquer passante com dificuldades em português e matemática pode entrar e, gratuitamente, receber uma breve aula particular sobre fatoração ou análise sintática, raiz quadrada ou ortografia. Ao ler o cartaz com os dizeres “Tire aqui suas dúvidas de português e matemática”, a criança disse ao pai:
— Ah, então é aqui que as pessoas vêm tirar suas dúvidas! Pai, deixa eu pegar uma pra mim!
O erro nos ajuda a acertar com esmero. Um erro não é mero equívoco. Erra redondamente quem menospreza o poder criativo do erro.
Uma professora me contou que, no início de sua carreira, faz mais de 30 anos, tinha em sala de aula um aluno que falava “truxe” em vez de “trouxe”. O menino vivia trazendo coisas: “Professora, eu truxe o lanche! Professora, eu truxe o caderno! Professora, eu truxe a lição de casa!”
A professora repetia, com um sorriso bondoso, que era errado dizer “truxe”. Que o certo era “trouxe”. Que a gramática é que estava certa. O aluno também sorria, ouvia, mas não entendia a correção. Fazia expressão de “caixa d’água”, indecifrável. E continuava trazendo coisas: “Professora, eu truxe um bilhete da minha mãe! Professora, eu truxe uma flor para a senhora!”
Até que um dia, com a paciência esgotada, quando mais uma vez o “truxe” se fez, a professora exigiu que o menino escrevesse no caderno quinhentas vezes: “eu trouxe”, “eu trouxe”, “eu trouxe”… E que trouxesse o exercício-castigo no dia seguinte, sem falta!
E o menino não faltou. Lá estava ele, diante da professora. O olhar tranquilo, a alegria do dever cumprido, as quinhentas linhas devidamente alinhadas. Um começo de bolha no dedo, por escrever com força e realizar a tarefa:
— Professora, aqui está. Eu truxe os trouxe!
* Gabriel Perissé é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e escritor. Website www.perisse.com.br.
** Publicado originalmente no site do Correio da Cidadania.