Arquivo

Migrantes latino-americanos sofrem preconceito em sua própria região

Emiliana Mamani mostra uma revista de 2000 que alertava para “a invasão silenciosa” de bolivianos na Argentina, na qual inclusive, assegurou, foi manipulada a foto para que o imigrante aparecesse sem um dente. A imigrante boliviana recorda aquele episódio como o mais duro em seus 30 anos no país de acolhida. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Emiliana Mamani mostra uma revista de 2000 que alertava para “a invasão silenciosa” de bolivianos na Argentina, na qual inclusive, assegurou, foi manipulada a foto para que o imigrante aparecesse sem um dente. A imigrante boliviana recorda aquele episódio como o mais duro em seus 30 anos no país de acolhida. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 19/2/2015 – No filme Um Dia Sem Mexicanos, o misterioso desaparecimento dos trabalhadores dessa origem paralisa o Estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Aconteceria o mesmo em alguns países latino-americanos caso evaporassem os imigrantes de países vizinhos, igualmente discriminados?

A resposta é que a situação não é comparável, mas um novo informe da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) mostra que o fluxo migratório intrarregional sofreu aceleração no período 2000-2010, quando cresceu ao ritmo anual de 3,5%, enquanto diminuiu o destinado ao resto do mundo. Há 28,5 milhões de latino-americanos vivendo fora de seus países, dos quais 20,8 milhões nos Estados Unidos, enquanto dentro da região há 7,6 milhões de imigrantes, 63% deles procedentes de países vizinhos.

Também seria inseparável a rígida política migratória dos Estados Unidos ou da Europa com a latino-americana, que mediante acordos de integração regional favorece a residência dos cidadãos vizinhos e rechaça “as medidas unilaterais e restritivas de alguns países desenvolvidos”, de acordo com a Cepal.

Porém, o especialista argentino em imigração, Pablo Ceriani, considera que um hipotético roteiro de “Um Dia Sem Latino-Americanos na América Latina” poderia começar a ser construído a partir de algo que compartilham a região e o norte tão criticado: as manifestações de xenofobia.

“Além de avanços legislativos, da igualdade no tratamento do migrante, de direitos plenos e da eliminação de restrições migratórias, existem precedentes de xenofobia em todas as sociedades da região, por parte de atores sociais, grupos políticos e meios de comunicação”, disse à IPS Ceriani, também integrante do Comitê para a Proteção de Todos os Trabalhadores Migratórios e de seus Familiares, da Organização das Nações Unidas (ONU).

“A nossa não se diferencia muito de outras regiões na reprodução de mitos e falsas ideias sobre as migrações, que não se apoiam em estatísticas e que geram atitudes de rejeição que justificam que algumas leis não avancem”, acrescentou Ceriani. Para ele, a discriminação é notória em políticas migratórias como a mexicana, que “no ano passado deteve 21.500 crianças e as deportou para seus países de origem: Honduras, Nicarágua, El Salvador e Guatemala”, sua principal migração intrarregional.

Mas também há exemplos mais sutis em países que contam com acordos migratórios, como o que vigora no Mercosul (formado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela), que em 2002 estabeleceu o direito à residência, bastando apresentar o documento de nacionalidade e o de falta de antecedentes criminais. “Trazem problemas de segurança, trazem seus costumes, tiram nossos empregos”, ilustrou Ceriani ao enumerar alguns mitos xenófobos.

Emiliana Mamani, uma boliviana que reside há 30 anos na Argentina, sabe bem disso. “Sempre se sofre a discriminação pelo aspecto físico. Essa crença de que o boliviano tira o trabalho do outro”, recordou à IPS a presidente da Associação Centro de Mães 27 de Maio e da cooperativa de mesmo nome, a primeira dirigida por mulheres migrantes bolivianas.

Os bolivianos ocupam o segundo lugar entre os imigrantes intrarregionais na Argentina, depois dos paraguaios e à frente de chilenos e peruanos. No país há 1,8 milhão de estrangeiros, 4,5% da população total.

http://cdn.ipsnoticias.net/wp-content/uploads/2015/02/porcentajeinmigrante9.jpg
http://cdn.ipsnoticias.net/wp-content/uploads/2015/02/porcentajeinmigrante9.jpg

 

A Cepal indica que os países latino-americanos com maiores volumes de imigração regional são Argentina, Venezuela, Costa Rica e República Dominicana, enquanto Brasil e México são os únicos onde predomina a recepção de outras origens, o primeiro da Europa e o segundo dos Estados Unidos.

“Às vezes ouço: por que não volta para o seu país? Não venha dar uma de macho ou de esperto aqui. Porque não passa de um boliviano sujo, bêbado”, contou Mamani, cuja cooperativa conseguiu um crédito social do Instituto da Habitação com o qual construíram um edifício onde agora vivem 12 famílias de compatriotas.

Mamani tem três filhos, uma nascida na Bolívia e dois argentinos e estudantes universitários, que sofreram discriminações na escola, como terem questionada sua participação em atos patrióticos. O mesmo sofreram em hospitais, embora na Argentina todo estrangeiro tenha direito de ser atendido, independente de sua situação migratória. “Nos hospitais às vezes dizem que não há vaga ou nos pedem documentos quando não deveriam pedi-los, mas se vai um gringo loiro tipo norte-americano ou europeu procuram entendê-lo, falando inclusive por sinais”, afirmou.

Isso apesar de há dez anos existir na Argentina a Lei de Migração 25.871, muito avançada na proteção humanitária. Além disso, desde 2006 foi regularizada a situação de 736 mil imigrantes brasileiros, paraguaios, uruguaios, bolivianos, colombianos, chilenos, equatorianos, peruanos e venezuelanos.

Mamani considera que para combater culturalmente a discriminação se deve começar pelas escolas e pelos hospitais, entre outras instituições públicas, que “parecem desconhecer as leis migratórias”. Outro foco devem ser os meios de comunicação, grandes porta-vozes de estereótipos. “Por exemplo, em um roubo, se por acaso entre argentinos há um boliviano ou peruano a imprensa destaca que um boliviano roubou”, ressaltou.

Preconceitos enquistados por temores atávicos “pelo diferente” são, portanto, “muito lentos e difíceis de combater”, segundo um funcionário da Direção Nacional de Migração que pediu para não ser identificado.

Para Ceriani, na Argentina, como ocorre em outros países latino-americanos, existe uma visão idealizada sobre a migração europeia do século 19 e primeira parte do século 20, comparando-a com a latino-americana. Mas, ao se remeter à literatura ou à imprensa da época, se percebe que essa discriminação também existia nos países receptores em relação a espanhóis, italianos e portugueses. Estereótipos como eram “pobres”, “ladrões” ou “ignorantes”, que foram “se desfazendo com o tempo”, acrescentou.

Por trás da decisão de migrar, naquela época e agora, prevalece a busca por melhores condições de vida. “Só o que sempre fazemos é trabalhar e trabalhar. Quando decidimos fazer as malas em nosso país, a finalidade é trabalhar, ressaltou Mamani, que se animou a emigrar porque uma amiga lhe contou que “em apenas um ano teria bastante dinheiro”.

Segundo Ceriani, os bolivianos trabalham na Argentina e enriquecem o país, por exemplo, aportando técnicas originais de cultivo de frutas e verduras. Também trabalham nas oficinas têxteis que, apesar das condições de trabalho muito precárias, abastecem as melhores marcas de roupa.

Os paraguaios são procurados pela construção e pelos serviços domésticos. Os peruanos para cuidar de crianças, idosos, enfermagem, embora muitos emigrantes latino-americanos também trabalhem como mão de obra qualificada, técnica ou profissional. Na região os exemplos são inúmeros. No norte do Brasil, os haitianos contribuem para a construção de grandes infraestruturas ou na mineração.

Na Costa Rica os nicaraguenses têm um papel preponderante na construção, agricultura e no serviço doméstico, muito semelhante ao que acontece com os colombianos na Venezuela.

O avanço da integração trará muitos mais exemplos de livre circulação intrarregional. Mas o avanço econômico de alguns países e a paralisação de outros continuará criando estereótipos discriminatórios. Por isso, Ceriani destacou que é preciso abordar a migração a partir de suas causas estruturais. E isso se consegue reduzindo as brechas sociais e econômicas entre os países latino-americanos, acrescentou. Envolverde/IPS