Para manter a economia brasileira fora da crise, o governo federal tem apostado alto em investimentos na indústria automobilística como um atalho para o crescimento e geração de empregos. Por isso, desde 2008 concedeu ao setor medidas para renúncia fiscal de cerca de 11,3 bilhões de reais. As empresas parecem, porém, ter aproveitado os incentivos para ajudar as matrizes em dificuldade. Isso porque, no mesmo período, as remessas ao exterior somaram 38,1 bilhões de reais, segundo o Banco Central. Ou seja, para cada 1 real renunciado em impostos a fim de ativar a cadeia produtiva do setor – que representa cerca de 20% do PIB industrial do País -, as montadoras remeteram 3,3 reais ao estrangeiro.
Essa proporção é considerada elevada por analistas. E isso ocorre porque o governo fornece incentivos sem definir contrapartidas claras, defende Samy Dana, professor da FGV-SP e pesquisador do Centro de Estudos em Finanças da entidade. “O governo pode estar financiando o lucro de pessoas fora do Brasil ou até financiando parques industriais em outros países.” Ele destaca o caso de empresas que enviam a suas matrizes valores acima do lucro líquido, se desfazendo de um ativo próprio e comprometendo suas operações no Brasil.
O setor, ainda assim, tem peso importante na economia nacional e precisa de apoio. Algo que não é um problema desde que haja exigência de contrapartidas, aponta Fernando Sarti, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnóloga (Neit). Entre elas, o aporte de recursos próprios das corporações para investimento em inovação, essencial para acompanhar os mercados globais e gerar empregos. O estudioso defende também que as concessões brasileiras visem fazer com que a indústria automobilística aumente sua capacidade de inovação e dobre a produtividade, estimada em 4,3 milhões de veículos por ano. Um salto que proporcionaria uma inserção global significativa como exportador – a exemplo das montadoras chinesas e coreanas – e não apenas mercado consumidor. “O investimento traz mudanças de processo, novos produtos mais atualizados e com melhor tecnologia, que impulsiona a capacidade, criação de emprego e complementariedade regional.”
Em nota, a Anfavea (Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores) afirma que entre 2009 e 2011, as montadoras associadas enviaram ao exterior apenas 5,2% do faturamento. O “restante”, aponta, ficou no País e foi transformado “em novos investimentos em produção e produtos, empregos e salários, novos impostos, compras de materiais e serviços.” Além disso, a associação informa ter gerado, entre 2009 e 2011, 137 bilhões em impostos diretos.
Os investimentos citados somaram 30,8 bilhões de reais entre 2008 e 2011 no Brasil. Um número que representa apenas 5,1% do faturamento de 597 bilhões de reais entre 2008 e 2011, apesar da previsão de outro aporte de 25 bilhões de dólares até 2015. Além disso, as características dos investimentos realizados sem apoio público – como os 4,1 bilhões de reais emprestados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a Volkswagen, General Motors, Fiat, Renault, Ford e Mercedes-Benz melhorarem sua produção e desenvolverem linhas de veículos – são incertas. O que é listado como “investimento” pode, por exemplo, incluir gastos milionários com propaganda e publicidade, aos invés de máquinário moderno e infraestrutura.
Com as diversas medidas de incentivo à indústria automobilística após a crise, entre elas a desoneração do IPI para automóveis em 2008, Sarti acredita que as empresas apenas aproveitaram o poder do mercado interno brasileiro. Passaram, inclusive, a importar veículos de países mais ociosos para vendê-los aqui. Isso fez com que as importações totalizassem 1,5 milhão de unidades no período 2008-2010 e negativassem a balança comercial de automóveis, historicamente superavitária. Um fator que prejudica setores como o de autopeças, majoritariamente composto por empresas nacionais, que poderia produzir itens destes carros. “Estamos usando uma base depreciada que poderia ser modernizada”, diz Sarti. “Essa estrutura foi montada em grande parte nos anos 90 e as empresas lucram e enviam dinheiro ao exterior com ela investindo apenas na manutenção da linha. É preciso mais.”
E o quadro parece estar piorando. Apesar de o setor gerar um elevado número de empregos (146 mil postos de trabalho em 2011) e possuir uma cadeia produtiva extensa, as medidas de incentivo adotadas neste ano ainda não sutiram efeito. Em 2009, o estímulo ao consumo com crédito fácil e preços baixos teve resultados expressivos. Em 2012 as vendas aumentaram, os estoques estão sendo vendidos, mas a cadeia produtiva ainda não engrenou.
A lei de Jango
A elevada quantidade de valores enviados ao exterior pela indústria automobilítica é permitida pela lei de remessas de lucros brasileira (4131/62), promulgada em janeiro de 1964 no governo do presidente João Goulart, o Jango. Mas, à época, a lei era mais rígida. Considerava capital nacional os lucros obtidos em atividades no Brasil e estabelecia o limite de remessas em 10% do total do capital registrado das empresas. A medida, vista como excessivamente nacionalista, foi um dos elementos que contribuiram para o golpe militar daquele mesmo ano. Tão logo chegaram ao poder – sob pressão de multinacionais norte-americanas-, os militares revogaram as partes mais polêmicas da legislação.
Quase 60 anos depois e algumas mudanças sofridas, a lei permite às empresas enviar remessas ao exterior livremente. Algo que deveria ser mantido, segundo Jarbas Machioni, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo. Para ele, é preferível exigir da indústria automobilística investimentos em tecnologia e conteúdo nacional a arriscar uma mudança em um momento de crise mundial. “Como muitas destas empresas procuram o governo por reduções no IPI ou empréstimos do BNDES, é possível atrelar essas demandas a investimentos vistos como necessários [pelo governo]”, diz Sarti.
* Publicado originalmente no site Carta Capital.