A rodovia, que atravessa o território indígena Tipnis, na Amazônia boliviana, põe em risco reserva ecológica e gerou protesto dos indígenas e dura repressão pelo governo. Os eventos causaram séria crise política, que levou ao pedido de demissão do ministro da Casa Civil, da ministra da Defesa e de vários outros altos funcionários do governo.
O presidente Morales, diante da ameaça de que o protesto se alastre, disse que interromperia as obras e somente as retomaria se aprovada em referendo com a população das regiões afetadas. Mas os indígenas em protesto, que receberam o apoio de outras comunidades indígenas e de organizações sindicais, não querem o referendo. Inclusive porque as obras ainda não foram de fato interrompidas, apesar do anúncio pelo presidente. Os indígenas querem nova legislação que proteja específica a reserva Tipnis.
O movimento rejeita a estrada porque considera que ela ameaça gravemente a reserva ecológica e cria o risco de ocupação da área por produtores de coca, para fornecimento ao narcotráfico.
O presidente Evo Morales, se desculpou publicamente pela violência contra os indígenas no final da semana passada. Segundo a CNN, citando a imprensa estatal, Morales disse que a ordem não partiu dele e que ninguém em seu governo imaginaria que um ataque desses seria feito contra “os irmãos indígenas”. Mas aparentemente, ainda não conseguiu ainda reconquistar a confiança de parte de sua principal base de apoio político e social.
A obra é, na verdade, um projeto brasileiro na Amazônia boliviana. Está sendo feita por uma empreiteira do Brasil e 80% dela é financiada pelo BNDES. A estrada permitiria ao Brasil ter acesso a portos no Pacífico.
Enquanto o governo boliviano interrompe a obra e dá sinais de que pode embargá-la para por fim ao conflito, o governo brasileiro a defende com unhas e dentes. O Itamaraty emitiu nota, na qual diz que se “trata de projeto de grande importância para a integração nacional da Bolívia e que atende aos parâmetros relativos a impacto social e ambiental previstos na legislação boliviana”.
O movimento indígena tem interpretação distinta da expressa pelo Itamaraty. Os indígenas afirmam que a legislação que protege áreas de preservação impede esse tipo de obra, que também feriria a Constituição. De qualquer forma, querem uma lei protegendo especificamente o santuário ecológico dos Tipnis.
A credibilidade do governo brasileiro para determinar impacto social e ambiental de obras que julga estratégicas, como Belo Monte a Br163 e essa rodovia da “integração”, é muito discutível. Tenho recebido inúmeros alertas de especialistas da Amazônia sobre o alto impacto social e ambiental da Br163, que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. O projeto é ainda do governo militar, dos anos 70, mas se tornou estratégico nos governos Lula e Dilma Rousseff. Tem sido, infelizmente, comum esse ressuscitar de projetos do regime militar, cuja preocupação social ou ambiental era, como se sabe, nula.
Segundo os relatos de especialistas que tenho recebido – ainda não pude verificar no local, mas pretendo ir – onde o asfalto chega, aumentam seriamente o desmatamento e a deterioração social. O afluxo de pessoas em busca de oportunidades, que dificilmente encontrarão ao longo da estrada, traz consigo ocupação desordenada, violência, prostituição. A região da rodovia corre alto risco de se transformar em mais uma área desmatada, de pobreza e desmando.
A rodovia é uma má opção para a Amazônia. Há estudos de logística mostrando que hidrovias e ferrovias são mais baratas e causam menos danos ambientais, para transporte de cargas. O mesmo se pode dizer para passageiros. O problema é que o transporte hidroviário na região é de péssima qualidade. Não melhora há décadas. Outro dia encontrei um professor da Universidade de Brasília, que morou anos na região e volta sempre lá. Ele me disse que não consegue entender a ausência de investimento e regulação para garantir transporte rápido e seguro às populações locais pelos rios da região.
Desci, recentemente, o Rio Negro, de Novo Airão até Manaus, em um barco moderno, que faz o percurso em um sétimo do tempo. O barco é de um empresário local que viu a oportunidade. As pessoas das comunidades ribeirinhas são a maior parte da lotação. Preferem usá-lo, embora seja mais caro, porque economiza praticamente um dia útil de tempo no trajeto. Não é a solução definitiva, porque não tem escala suficiente, mas mostra que existe um caminho. Caminho que o governo jamais estudou ou procurou entender. Nem os governos dos estados amazônicos, nem o governo federal.
Para os governos, progresso é asfalto, aço e concreto, independentemente das peculiaridades locais. Essa não é a opção para uma região como a Amazônia e tem tudo para dar muito errado se aplicada a ferro e fogo como tem sido feito. A Amazônia perde valor com essas escolhas e se desencaminha da rota do desenvolvimento com bem estar e sustentabilidade para o qual tem mais vocação do que qualquer outra região do Brasil.
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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.