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Morte de Neruda ajuda a descerrar o véu da ditadura chilena

Peritos do Serviço Médico Legal exumam os restos de Pablo Neruda em Isla Negra. Foto: Marianela Jarroud/IPS

 

Santiago, Chile, 9/4/2013 – O avanço da investigação no Chile sobre o possível assassinato de Pablo Neruda pela ditadura é visto como um grande passo na busca de verdade e justiça para as violações dos direitos humanos que continuam sem punição 40 anos depois de cometido o golpe de Estado. Os restos de Neruda foram exumados ontem do túmulo onde também está o corpo de sua última mulher, a cantora e escritora Matilde Urrutia (1912-1985), na que foi sua residência em Isla Negra, 110 quilômetros a oeste de Santiago.

Os peritos buscarão dois elementos biológicos, um relacionado com sua doença, e outro com supostas substâncias tóxicas que possam ter sido aplicadas ao poeta. As mostras serão analisadas em laboratórios chilenos e possivelmente no exterior, já que chegaram oferecimentos de Canadá, Espanha, Estados Unidos, Suécia e Suíça. O processo poderá durar três meses.

A diligência foi ordenada pelo juiz Mario Carroza, que investiga se houve participação de terceiros na morte do ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1971, ocorrida em 23 de setembro de 1973, apenas 12 dias após a sangrenta derrubada de seu grande amigo, o presidente socialista Salvador Allende, que havia cumprido apenas três anos de mandato.

“É extremamente importante um juiz dizer que é preciso esclarecer todos os casos de violações dos direitos humanos, bem como a morte de Allende, do ex-presidente Eduardo Frei Montaval (1964-1970) ou de Neruda, porque é reconhecer que a justiça está em dívida com os crimes cometidos durante a ditadura”, disse à IPS o sociólogo Manuel Antonio Garretón, prêmio Nacional de Humanidades 2007.

Neruda morreu na clínica particular Santa María, de Santiago, quatro dias depois de internado para tratar do câncer de próstata que sofria, mas que não o impedia de ter uma vida normal. Pessoas próximas ao poeta suspeitam que a causa de sua morte foi a aplicação de uma injeção com uma substância tóxica, provavelmente semelhante à que se presume matou, em 1982, o líder democrata-cristão Frei Montalva, então um dos principais opositores à ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990).

Nascido com o nome de Neftalí Reyes, Neruda tinha no momento de sua morte 69 anos, há 28 estava filiado ao Partido Comunista do Chile e se preparava para partir em exílio para o México, onde pretendia ser a voz da oposição à ditadura.

O advogado querelante, Eduardo Contreras, explicou à IPS que existe “uma forte suspeita” de que Neruda foi assassinado por agentes da Direção de Inteligência Nacional (Dina), a polícia secreta de Pinochet. Contreras disse que, naquela época, já operava no Chile o norte-americano Michael Townley, duplo agente da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Dina, autor material de numerosas mortes por envenenamento com substâncias químicas

Townley trabalhava com Eugenio Berríos, o químico que se dedicou à fabricação do gás sarin e de outras armas químicas letais sob as ordens da hoje desaparecida Dina e que foi sequestrado e assassinado no começo da década de 1990 no Uruguai por militares a serviço dos dois países.

Nos dias anteriores à sua morte, a profunda sensibilidade de Neruda foi afetada quando suas três casas foram invadidas por agentes da ditadura, que quebraram tudo que viam pela frente. Em sua casa mais apreciada, a de Isla Negra, sofreu a brutalidade militar: a tropa revirou suas coleções de caracóis, conchas e borboletas, suas garrafas e carrancas de proa, livros, quadros e até seus versos não terminados.

Os militares fizeram com que demitisse todos os seus empregados e ficaram apenas Urrutia e seu motorista e secretário pessoal, Manuel Araya, que quase 40 anos depois é o protagonista do processo que o Partido Comunista levou à justiça. “Quero que os forenses coloquem a mão no coração e contém a verdade sobre Neruda. Não chegou a fazer testamento porque não estava para morrer”, afirmou Araya à IPS.

Para Garretón, mesmo que Neruda não tenha assassinado, é importante investigar todos os vexames aos quais foi submetido anteriormente à sua morte. “Suponhamos que se descubra que não há indícios da intervenção de terceiros, de todo modo foram cometidos crimes que têm a ver com a invasão de sua casa e ações que aceleraram sua morte”, afirmou.

Garretón acrescentou que, se for comprovado um assassinato, “a repercussão poderá ser muito grande e muitos dos que ainda não acreditam que foram cometidas violações dos direitos humanos poderão se dar conta que inclusive a máxima figura da poesia nacional foi assassinada, de forma direta ou indireta”. Além disso, volta-se a colocar sobre a mesa, a partir de grandes personalidades, as violações dos direitos humanos que não foram punidas, acrescentou.

O atestado de óbito de Neruda indica que morreu de caquexia, uma desnutrição extrema causa por uma rápida perda de peso que origina tanta fraqueza, que impede o desenvolvimento de atividades, por menores que sejam. Porém, o poeta pesava mais de cem quilos, segundo disse Araya referendado pelo embaixador mexicano no Chile em 1973, Gonzalo Martínez, que o visitou na clínica.

Um dia após sua morte, o jornal conservador El Mercurio publicou que Neruda morrera “por causa de um ataque do coração, em consequência de um choque sofrido depois de ter recebido uma injeção de calmante”.

O ex-juiz Juan Guzmán, que foi o primeiro a processar Pinochet, disse que a exumação dos restos de Neruda aproxima o caso à tese do homicídio. “Imagino que, para ter tomado essa decisão, Carroza já deve ter presunções fortes de que morreu por causas alheias à enfermidade”, disse à IPS. “Antes, estava cético, mas depois de todas as investigações que realizei, muitas delas de índole médica, hoje em dia já não sou muito e penso que se deve investigar quando há indícios de que possa ter ocorrido um crime”, acrescentou.

No caso de confirmação da tese de assassinato, “seria espantoso”, afirmou Guzmán. “Pablo Neruda era um homem de paz, que percebia a paz por meio da poesia e de suas atuações pessoais. Por isso, para mim, mais do que o assassinato da pessoa, seria o assassinato do que ele representa”, concluiu. Envolverde/IPS