Mogadíscio, Somália, 24/6/2013 – Istar Mumin, de sete anos, jaz imóvel na cama em um dos quartos de sua casa no distrito de Hamarwyne, em Mogadíscio, capital da Somália. Ela se recupera do “corte”, prática tradicional realizada por uma enfermeira. “Sinto dor, não posso me mexer. Me cortaram”, disse à IPS com lágrimas nos olhos. A menina estava visivelmente fraca devido à intervenção. Na sala da casa, sua mãe, Muhibo Daahir, se mostra com ânimo festivo, pois a família recebe os convidados que vieram comemorar a circuncisão de Mumin.
A antiga prática de mutilação genital feminina (MGF) está proibida pela Constituição. Mas é amplamente realizada até em meninas de cinco anos, especialmente nas zonas afetadas pelo conflito. A tradição é destinada a mantê-las puras e prepará-las para o casamento. A maioria das famílias vive o momento com felicidade, pois é motivo de comemoração.
Segundo o documento Erradicação da Mutilação Genital Feminina na Somália, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), “a MGF pode deixar graves sequelas no bem-estar físico, mental e psicossocial em quem a sofre”. O estudo acrescenta que “as consequências para a saúde são imediatas e de longo prazo. Apesar das muitas leis reconhecidas em nível internacional contra a MGF, a não aprovação total do Islã e as iniciativas globais para erradicá-la, continua arraigada na cultura somaliana”.
O estudo também assinala que “as complicações de longo prazo incluem perda da libido, má-formação genital, primeira menstruação tardia, complicações crônicas na pélvis e infecções e retenção urinária recorrentes”. Também afirma que “as meninas circuncidadas têm pré-disposição de no futuro sofrer complicações obstétricas, porque o feto fica exposto a várias doenças infecciosas e corre o risco de sua cabeça ficar presa no canal de parto lesionado”.
A nova lei fundamental da Somália considera essa prática como “tortura”. O Artigo 15 da Constituição Provisória estabelece que “a circuncisão das meninas é uma prática tradicional cruel e degradante, e equivale à tortura. A circuncisão das meninas está proibida”. No entanto, não há nenhuma lei específica e a prática se mantém, tanto em áreas rurais como urbanas, nesta nação do Chifre da África.
Daahir se coloca na defensiva ao ser consultada sobre o motivo que a levou a permitir a circuncisão de sua filha. “Nossa religião nos permite purificar nossas filhas para que possam se casar quando estiverem maduras. O governo não pode nos impedir de praticarmos nossa religião”, afirmou. Daahir disse que sua filha, “como outras meninas desta época”, foi circuncidada segundo a forma sunnah, permitida pela religião islâmica. Um método que implica o corte parcial do clitóris.
Outra forma de circuncisão praticada na Somália é a faraônica, que implica a remoção completa do clitóris e dos lábios maiores e menores. A abertura vaginal externa é suturada e se deixa um pequeno orifício para sair a urina e o sangue menstrual. Daahir acrescentou que, ao contrário do que se fazia antes, atualmente uma enfermeira diplomada realiza a circuncisão.
No entanto, nas zonas da Somália, onde nas duas últimas décadas não houve guerra, a prática diminui. O Unicef publicou em abril uma pesquisa com entrevistas feitas na região de Puntland e no Estado separado de Somalilândia, onde a circuncisão genital feminina diminuiu. Estudo, realizado junto com as autoridades locais, concluiu que 75% das meninas pesquisadas com idades entre um e 14 anos, não estavam mutiladas, bem abaixo dos 99% das que foram circuncidadas em outras partes do país.
O Programa Conjunto do Unicef e do Fundo de População das Nações Unidas, conseguiu a participação de aproximadamente 300 mil membros e atores da comunidade em um debate sobre o abandono da MGF em Puntland e na Somalilândia. A razão da redução da MGF no norte pode estar relacionada com a relativa estabilidade que manteve a zona nas duas últimas décadas, enquanto o resto do país sofreu uma guerra civil entre clãs desde 1991.
As campanhas de conscientização e educação sobre os perigos da MGF tradicional não puderam ser feitas nas áreas problemáticas, como aconteceu em Somalilândia e Puntland. “Os somalianos não abandonaram a circuncisão, mas a realizam de forma menos cruel do que a faraônica, usam a sunnah, que comparada com a tradicional não é invasiva”, disse à IPS a ativista Halimo Ali, radicada em Mogadíscio. “Conheço o estudo feito em Puntland e Somalilânida, e é animador. Mas duvido que os somalianos deixem de circuncidar suas filhas de uma forma ou de outra”, opinou.
Maruan Aalim, com sete filhas, disse à IPS: “Todas estão circuncidadas com a sunnah, salvo a mais velha, em quem foi praticada a forma ancestral (farônica). Escolhi a última porque é a permitida pelo Islã”. O xeque Omar Ali, clérigo de Mogadíscio, é um dos sete líderes religiosos aos quais as pessoas recorrem quando querem justificar a MGF. “Só há uma forma de circuncisão prescrita pelo Islã, e é a sunnah. A faraônica é anterior, não é islâmica”, explicou à IPS. Ativistas locais disseram que querem a erradicação total da prática, mas reconhecem a “mudança cultural” que houve na sociedade somaliana, e afirmam que a evolução da prática pode ser considerada um passo positivo para sua completa eliminação neste país.
“Agora as pessoas reconhecem as consequencias negativas da forma extrema de MGF sobre as mulheres e meninas, e adotam a sunnah. Não é o que queremos, mas é um passo na direção correta”, disse à IPS a professora Raho Qalif, de Mogadíscio. A prática terminará desaparecendo da cultura somaliana, acrescentou, ressaltando que observou uma “tendência”: circuncidar as meninas com a sunnah “está na moda”. Para Qalif, “todo mundo sabe que agora na Somália se desaprova a forma extrema de MGF, e os homens buscam mulheres circuncidadas com a sunnah para se casar”. Envolverde/IPS