Cem anos após a criação, a prova tornou-se porta de entrada para o Ensino Superior e passou a determinar a formatação dos currículos escolares.
Em tese, seria o mecanismo de triagem de candidatos para o Ensino Superior. Mas, em um século de história, o vestibular ganhou significados e peso que ultrapassam esse perfil selecionador, transformando-se em um dos fatores mais determinantes na definição dos currículos do Ensino Médio. Uma relação perigosa, alerta o coordenador da prova da Unicamp, Renato Pedrosa, para quem o fato de o exame ser o único meio de acesso às universidades desvaloriza todo o processo do Ensino Básico. “Ele indica para a comunidade educacional, para a família e para os jovens que a escola pode ajudar, mas não é tão importante quanto a prova final.”
Criado em 1911 pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores, Rivadávia Corrêa, o vestibular nasceu da Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamental da República, que tinha como um dos artigos o exame admissional obrigatório para o Ensino Superior. A partir daí, e para cumprir o papel de selecionadora, a prova adotou por anos o modelo de uma maratona de questões de múltipla escolha que exigiam que o estudante dominasse uma quantidade imensa de informações e detalhes sobre todo o conteúdo supostamente aprendido durante o Ensino Médio.
E mais: tentava derrubar candidatos com “pegadinhas”. “Naquele formato, a escola não tinha o know how ou o tempo necessários para preparar o aluno”, afirma Maria Luiza Abaurre, ex-formuladora de questões do vestibular da Unicamp. “Enquanto for a porta de entrada para o Ensino Superior, a escola vai usar o vestibular como parâmetro de formatação de seus currículos”, completa.
Desse descompasso nasceu a indústria dos pré-vestibulares.
Em entrevista a Carta na Escola, sobre as recentes mudanças no vestibular da Universidade de São Paulo (USP) – que elevou a nota de corte e diminuiu a proporção de candidatos que passam da primeira para a segunda fase – o coordenador do Anglo, Nelson de Castro, admite que o aluno médio de escola pública está em desvantagem com relação ao de escola particular. “A única coisa para ele é fazer cursinho”, opinou. Mas, mesmo tal ajuda extra passa por um filtro socioeconômico. Em São Paulo, o valor da mensalidade flutua na casa dos R$ 600 e instituições como o Intergraus chegam a cobrar R$ 4.290.
Injustiça intrínseca
A princípio, o cardápio de seleções aplicáveis era variado. No caso da Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934, cada curso tinha seu método e eram comuns provas discursivas e orais. Ao longo dos últimos cem anos, porém, o exame mudou várias vezes. Em 1968, o MEC determinou que os testes para o Ensino Superior fossem classificatórios, e a nota absoluta do candidato passou a ser irrelevante. Assim, o vestibular perdeu a característica de avaliação do conhecimento, aproximando-se do modelo dos concursos públicos. O formato adotado – testes longos, detalhistas, de múltipla escolha – foi o que acabou moldando os conteúdos ensinados nas escolas.
No Brasil, além disso, o fator socioeconômico acrescenta um elemento de injustiça à fórmula do vestibular. Em todo o país, os cinco milhões de jovens que concluem o Ensino Médio disputarão apenas 300 mil vagas nas universidades públicas. Em São Paulo, só 0,7% das pessoas com Ensino Médio completo e idade entre 16 e 24 anos estão matriculadas em universidades federais, o menor índice do país.
“Apesar de termos observado um esforço nos últimos governos para melhorar a qualidade do ensino, temos de pressupor que o aluno da escola pública não vai disputar em condições de igualdade com o da particular. No processo, pelas características do país, existe um componente de injustiça pressuposto”, analisa Abaurre. Pedrosa concorda: “sabemos que há candidatos com um potencial muito alto, mas que, por causa da formação em um determinado tipo de escola – por exemplo, uma pública com pouca infraestrutura –, não consegue chegar à prova com o mesmo nível de outro vindo de uma particular”.
No total, 85% de todos os alunos que almejam uma vaga no Ensino Superior vêm do sistema público, mas eles ainda são minoria nos bancos das universidades mais bem conceituadas. Em São Paulo, correspondiam a apenas 8% dos 128 mil inscritos no último vestibular da Fuvest e representaram apenas 25% dos chamados na primeira lista. Para Abaurre, uma prova que levasse em conta essas diferenças seria, sim, mais justa do que outro tipo de processo seletivo, como o sorteio de vagas. “Em princípio, essa aposta tenderia a diminuir um pouco as diferenças que existem entre escolas públicas e particulares. Um pouco. Mas não é possível igualar com um exame as diferenças socioeconômicas.”
Evolução lenta
Entre as mudanças pelas quais o exame passou na última década, destacam-se iniciativas de grandes universidades que tentam avaliar, além do acúmulo de conteúdo, habilidades e competências como a capacidade de dissertação e argumentação. Mais recentemente, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) despontou como grande selecionador de alunos para os bancos das universidades públicas e particulares. Neste ano, 5,4 milhões de candidatos estão habilitados para fazer a prova. Seguindo a tendência de outras federais, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou em julho que todas as suas nove mil vagas serão preenchidas exclusivamente pelo Enem.
Para Abaurre, à medida que o modelo “decoreba” for abandonado em prol de um perfil mais analítico, a tendência é que os cursos preparatórios também se modifiquem. Entretanto, podem perder no confronto com as escolas, que já investem nesse tipo de formação a longo prazo. “A consolidação de um modelo de vestibular equilibrado tende a dificultar a sobrevida dos cursinhos.”
Nos últimos anos, medidas como o vestibular seriado e programas de acesso como o Profis da Unicamp também têm tentado driblar a dinâmica do vestibular tradicional. Na Universidade de Brasília (UnB), a seleção é diluída ao longo do Ensino Médio, com uma prova ao fim de cada ano. Batizada de PAS (Programa de Avaliação Seriada), procura amenizar a quantidade de conteúdo dos testes, que se tornam menos longos e cansativos. Outras instituições, como a Universidade Federal de Sergipe (UFS), também adotaram o projeto.
Além do vestibular seriado, a Unicamp criou, no ano passado, um programa-piloto para incluir os melhores alunos das 96 escolas públicas de Campinas na universidade, sem necessidade de vestibular. Com 120 vagas, o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis) seleciona, pelo resultado do Enem, ao menos um aluno de cada instituição de ensino público da cidade. Os escolhidos fazem um curso de dois anos, com aulas de todas as áreas do conhecimento. Ao final do período, todos têm vaga garantida na graduação – aqueles com as melhores notas escolhem primeiro. Os resultados preliminares são animadores: a renda familiar média per capita dos estudantes selecionados é de R$ 492, ante os R$ 1,8 mil da população entre 18 e 24 anos com acesso ao Ensino Superior.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.