Mudanças estruturais
Numa língua não ocorrem mudanças isoladas. Ocorrem em cadeia. Além disso, obedecem a um processo, não são instantâneas.
Numa língua não ocorrem mudanças isoladas. Ocorrem em cadeia. Além disso, obedecem a um processo, não são instantâneas. Uma forma pode ser antiga e não desaparecer totalmente.
Vou dar dois exemplos de variação (continua na próxima coluna), ou de mudança em curso, que talvez não cheguem a se consumar totalmente. A apresentação está obviamente simplificada.
Haver – ter – possuir
Em tempos idos, o sentido de haver era claramente ‘possuir / ter’, como em tenho livros, tenho vícios. São exemplos do Houaiss: “os Albuquerque hão cabedal de escudos para muito mais”; “Os Noronhas houveram notícia de sua prisão”. Um texto de D. Duarte, do Século 15, começa assim: “E este rrey Leyr non ouue (houve) filhos, mas ouue (houve) três filhas muy fermosas e amauuas (amava-as) muito”). Com o tempo, o verbo perdeu esta acepção. Ultimamente, seu sentido mais típico era ‘existir’, como se aprende nas aulas de gramática (havia muita gente, há muita falta de vergonha).
Até recentemente, o sentido de ter era “ser possuidor”. As pessoas tinham carros, namorados, dúvidas, pernas, cabelos, medo. Não haviam mais. Tinham. Mas, aos poucos, ter passou a substituir o verbo haver no sentido de “existir”. Quase só se diz “tinha gente lá em casa”, “tem dias que a gente se sente…”, “tinha uma pedra no meio do caminho”, “não tem mais jogador genial”, etc. O verbo haver é, a rigor, arcaico; só ocorre em textos bastante formais, em provas de português e em hinos – sacros, nacionais ou de clubes de futebol (“hei de vencer, vencer, vencer”). Ainda se ouve, mas muito raramente. Soa artificial, antigo ou solene.
O verbo possuir era empregado apenas em contextos relativamente formais. E não se empregava em contextos como possuir pais ou irmãos. Implicava basicamente posse alienável, isto é, que alguém podia não ter: terras, livros, namorados. Por isto, não se empregava em contextos como possuir mãos ou pés; em casos assim, empregava-se ter. Mas as coisas mudaram: como ter substituiu haver, possuir substituiu ter. Hoje, os livros possuem capítulos, as páginas possuem linhas, os meninos e meninas possuem avós, mães e cabelos lisos ou crespos. Antes, tinham!
A escala “evolutiva” para expressar o sentido de posse é haver > ter > possuir. Antigamente, havia-se bens; depois, tinha-se; hoje, possui-se. Haver e ter ainda alternam, no sentido de “existir”; ter e possuir, no sentido de “ser possuidor”. A tendência é que se fixem os segundos de cada dupla. Ninguém diz a bolsa dela possui de tudo. Ainda?
* Publicado originalmente no site Carta Capital.




