O governo comprou a ideia de que há excesso de demanda que tem que ser combatido com a redução das despesas para gerar forte superávit primário (receitas menos despesas, exclusive juros). Afirma que é necessário reduzir a despesa de custeio para expandir o investimento e abrir caminho para a redução dos juros básicos. Ora, o que está elevando a despesa são principalmente os juros. Sua redução dependa da redução da Selic, abrindo espaço para elevar investimentos e programas de distribuição de renda, que é o que mais interessa em termos de desenvolvimento econômico e social.
Nada mais desgastante na política e na economia do que a inflação, mais até do que o desemprego, pois atinge a todos, especialmente os de renda média e baixa. É por essa razão que os governos a elegem como prioridade absoluta na formulação e implementação da política econômica.
Além disso, a própria inflação acaba por criar o desemprego, com certa defasagem, ao retirar poder aquisitivo das camadas de renda média e baixa, reduzindo as vendas, produção e investimentos.
A oposição, vazia de propostas, já tomou a inflação como tema central de seus ataques ao governo e assumiu como solução para o problema o mesmo receituário ortodoxo da redução de despesas do governo federal e aumento da Selic para conter o consumo, que seria o vilão inflacionário. Assumiu a mesma terapia aplicada durante o governo FHC, que usou Selic bem superior à do governo Lula e realizou superávits primários segundo as exigências do FMI para salvar a iminente débâcle das contas internas e externas, ocorrida no início de 1999 (segundo mandato de FHC).
Com inflação em elevação, a base de apoio ao governo no Congresso Nacional passa a ser mais exigente para aprovar a criação ou modificação das propostas do Executivo e a mídia passa a martelar duramente o governo.
Isto está levando o governo a modificar sua política inicialmente traçada na posse da presidente de crescer com inflação sob controle e reduzir a Selic para conter a avalanche de dólares que está causando estragos na competitividade das empresas e ampliação dos rombos nas contas externas.
Essa modificação vai se dando na prática, apesar do governo negá-la, mas fato é que já há alguns meses vem elevando a Selic e admitindo que deva reduzir o consumo, diminuindo as despesas de custeio do governo e tentando controlar o crédito para diminuir o consumo das famílias, que representam 75% do consumo total, ficando o governo com 25%.
No caso das despesas do governo, dois compromissos foram assumidos: redução de R$ 50 bilhões no orçamento e obtenção de superávit primário do setor público (União, Estados e Municípios e suas estatais) de R$ 117,9 bilhões. Como demonstração desses compromissos, no 1º trimestre, em relação ao crescimento do PIB, o governo federal teve suas receitas crescendo 5,2% e as despesas caindo 4,4% (pessoal 7,5%, benefícios da previdência 6,2% e outras despesas 0,1%). Com isso, obteve um superávit primário de R$ 26 bilhões, acima da meta prevista para o 1º quadrimestre, de R$ 22,9 bilhões. Em 2010, o superávit do 1º trimestre foi de R$ 8,9 bilhões. Nada se falou sobre a forte elevação das despesas com juros que passaram, nesse período, de R$ 30,6 bilhões para R$ 40,9 bilhões, prejudicando o resultado fiscal em R$ R$ 10,3 bilhões.
No caso das despesas com consumo das famílias, as principais medidas foram: elevação dos depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central (BC) em cerca de R$ 80 bilhões, aumento do requerimento de capital para operações de crédito de maior risco (superior a 24 meses), e aumento do IOF sobre operações de crédito. O BC elevou a Selic em todas as três reuniões do Copom deste ano, totalizando 1,25 pontos percentuais, e já anunciou que continuará a elevá-la nas próximas reuniões. Esta elevação da Selic serve mais para valorizar o real barateando as importações do que para elevar os juros aos consumidores.
O Banco Internacional de Compensações (BIS) concluiu, no dia 29 de abril, na reunião dos bancos centrais, que os países emergentes podem estar complacentes com a inflação, mas que o Brasil não está. O texto do BIS destaca especificamente o combate à alta de preços no país pelo mix monetário e fiscal, notando que isto ocorre apesar de o crédito continuar aumentando, e que está subindo em todos os países.
Na comparação dos 21 países com regime de meta de inflação, a situação do Brasil não é a mais desconfortável. Apenas Noruega e Suíça têm expectativas de fechar o ano abaixo do centro da meta. Já oito BCs poderão fechar o ano estourando a meta: o Banco Central Europeu (BCE), Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Turquia, Chile, Israel e Tailândia.
A inflação, no entanto, é determinada por condicionantes internos e, principalmente, externos. Fato é que, desde setembro do ano passado, os preços dos alimentos e commodities deram um salto e tencionaram a inflação em todos os países, especialmente nos emergentes, que em relação aos desenvolvidos apresentam nível de crescimento econômico superior e o peso dos alimentos tem efeito maior sobre o orçamento familiar.
Segundo a Bloomberg e o BC, de jul/2010 a fev/2011 os preços das commodities subiram 74%. É importante observar que fazem parte das commodities alguns alimentos: milho, trigo, soja, cacau, café, açúcar, suco de laranja, gado vivo e porco.
Essa elevação internacional de preços acendeu os debates sobre a melhor forma de combate à inflação em cada país. Há uma afirmação muito difundida nas análises econômicas de que o crescimento econômico de um país acaba por acirrar o processo inflacionário, caso a oferta interna de bens e serviços não esteja atendendo as necessidades do consumo.
É importante avaliar com mais cuidado essa afirmação, pois caso aceita, o remédio mais adequado para combater a inflação é pôr o pé no freio do crescimento econômico, gerando desemprego e queda nas vendas, na produção, nos investimentos.
Em economias fechadas, onde não ocorre a importação de produtos, a afirmação faz sentido, pois a falta de atendimento, por parte das empresas, aos consumidores as leva, naturalmente, a elevarem seus preços. Mas, em economias abertas, a oferta é constituída da produção local e da importação. Assim, se num primeiro momento a empresa quiser remarcar seus preços, pode perder mercado para o produto importado mais barato e com qualidade compatível com a necessidade do consumidor.
É o que está ocorrendo no Brasil, mas não pelo aumento de preços por parte das empresas, mas pelo barateamento dos produtos importados, pois o valor do dólar vai ficando cada vez mais barato face ao real. Um ano atrás, cada dólar valia R$ 1,76 e em abril passou a valer R$ 1,59, ou seja, o dólar se desvalorizou perante o real em 9,7%. Há dois anos, essa desvalorização alcançou 28,1%.
Assim, torna-se cada vez mais difícil competir com o produto importado, que vem penetrando progressivamente no mercado brasileiro, causando problemas sérios às nossas empresas por questões alheias à sua eficiência nesta competição.
Mas o governo poderia deter esse processo? Sim, caso atuasse em cima das causas que têm criado essa supervalorização do real face ao dólar. E de que forma? Controlando o excesso de dólares que ingressam no país, com medidas de controle desse ingresso. É o que vêm fazendo os países emergentes, com destaque para a China, que faz sua moeda acompanhar o valor do dólar e, com isso, consegue manter forte sua posição competitiva nas exportações, penetrando agressivamente em todos os mercados.
Mas o Brasil faz o contrário, pois estimula a entrada de dólares por uma via altamente lesiva ao país. Esta via é o presente dado aos especuladores internacionais de usufruírem lucros garantidos pelas taxas de juros que se oferece a eles. Estes lucros têm o agravante de serem isentos de imposto de renda, o que não ocorre quando a aplicação é feita internamente.
O governo vem tentando deter essa enxurrada de dólares, atraída pela Selic e pela valorização do real entre o momento da aplicação e o do resgate, tributando essas aplicações com o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas não consegue cercar todas as formas de ingresso que escapam do IOF. Uma delas se dá por meio dos investimentos diretos de estrangeiros (IED), cuja finalidade seria a aplicação de longo prazo na produção, mas que não tem sua utilização controlada pelo Banco Central. Os lucros financeiros auferidos são depois levados para fora do país por meio da conta de lucros e dividendos, prejudicando o resultado das contas externas.
Para tentar salvar a economia americana, europeia e japonesa foram injetados trilhões de dólares, euros e ienes que se deslocam para países que ofereçam maiores vantagens à reprodução do capital. No caso brasileiro o saldo de dólares vindos a título de IED, só no 1º trimestre, atingiu US$ 17,5 bilhões, mais que o triplo do mesmo período de 2010 e o recorde histórico no país para esse período.
As diversas ações do governo para tentar conter a apreciação do real poderiam ser mais fortes, como, por exemplo, maior tributação pelo IOF e a quarentena. A não utilização dessas medidas faz supor certa conivência com a queda do dólar, que é útil no combate à inflação.
Outra questão de mudança na política econômica é que o governo comprou a ideia de que há excesso de demanda que tem que ser combatido com a redução das despesas para gerar forte superávit primário (receitas menos despesas, exclusive juros). Afirma que é necessário reduzir a despesa de custeio para expandir o investimento e abrir caminho para a redução dos juros básicos.
Ora, o que está elevando a despesa são principalmente os juros. Sua redução depende da redução da Selic, abrindo espaço para elevar investimentos e programas de distribuição de renda, que é o que mais interessa em termos de desenvolvimento econômico e social. A elevação dos investimentos favorece a melhoria da infraestrutura, e a distribuição de renda, além de ampliar o consumo, atenua o elevado déficit social.
Essa mudança de política (elevação da Selic, valorização cambial e elevado superávit primário) tem efeito favorável na inflação de curto prazo para este ano e meados do próximo, mas eleva o desemprego, o passivo fiscal e o déficit das contas externas, o que exigirá um esforço maior do governo no médio e longo prazos para conseguir manter um desenvolvimento econômico e social sustentável.
* Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela FGV e consultor.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.