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A mulher que penetrou na impunidade da Guatemala

As transformações empreendidas pela promotora geral Claudia Paz y Paz podem ser revertidas se não forem institucionalizadas. Foto: Danilo Valladares/ Envolverde/IPS
As transformações empreendidas pela promotora geral Claudia Paz y Paz podem ser revertidas se não forem institucionalizadas. Foto: Danilo Valladares/ Envolverde/IPS

 

Cidade da Guatemala, Guatemala, 4/11/2013 – A primeira mulher a dirigir o Ministério Público da Guatemala conseguiu minar a impunidade que ampara mais de 90% dos crimes nesse país da América Central. A questão é se as mudanças se devem apenas à marca da promotora geral Claudia Paz y Paz, de 46 anos, que se esfumaçarão quando terminar seu mandato, em dezembro de 2014.

Nunca antes um ex-chefe de Estado foi levado a julgamento por genocídio em seu próprio país. Essa primazia coube a Paz y Paz realizar com o ex-ditador Efraín Ríos Montt, embora o resultado penda por um fio. Paz y Paz também depurou o Ministério Público e conseguiu resultados sem precedentes em sentenças por homicídio, violação sexual, extorsão e sequestro.

O contexto em que atua não é um dado a mais: este é o único país do mundo onde as Nações Unidas e o governo estabeleceram em 2007 a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (Cicig). Sua primeira mudança foi aplicar no Ministério Público um sistema de avaliação por resultados. Os promotores com mais casos resolvidos são recompensados com oportunidades de ascensão, enquanto os de rendimento baixo devem explicar o motivo de não alcançarem suas metas e podem enfrentar processos disciplinares se for comprovada negligência, explicou Paz y Paz à IPS.

Cerca de 80% dos promotores que estavam há duas décadas no Ministério Público e tinham entre 65 e 75 anos decidiram renunciar após a entrada em vigor do novo sistema. Isso permitiu que jovens mais preparados no manejo de evidência forense assumissem como chefes de seção e de promotorias distritais.

Outro avanço foi priorizar a violência contra a mulher. Sob sua gestão foi inaugurado um tribunal 24 horas dentro da sede do Ministério Público, o que permite impor medidas cautelares contra os agressores de maneira ágil e sem que a vítima tenha que se deslocar da promotoria até o Organismo Judicial. Também foi criada uma unidade específica para investigar crimes sexuais e destinados mais recursos à Promotoria de Crimes Contra a Mulher.

Um sistema de avaliação pergunta de maneira aleatória aos denunciantes como foram atendidos e se sofreram discriminação. Essas pesquisas levaram à destituição de um promotor no departamento de San Marcos, por acossar uma jovem que havia denunciado uma violação. A desarticulação de grupos de narcotraficantes, praticantes de extorsões e sequestradores conseguida pela promotoria deve ser atribuída a “uma investigação mais proativa, dirigida a mercados ilegais ou a estruturas criminosas”, opinou Paz y Paz.

Em junho de 2012, o Tribunal Primeiro B de Maior Risco considerou responsáveis por vários crimes – sequestros, assassinatos e ataques a forças de segurança – 36 integrantes do grupo de narcotraficantes mexicanos Los Zetas, que receberam condenações entre dois e 158 anos de prisão. “O Ministério Público dirigido por Claudia Paz y Paz e apoiado pela Cicig conseguiu importantes avanços. Há um ex-presidente processado e as estruturas clandestinas começam a vir à luz”, disse à IPS o cientista político Juan Carlos Garzón, especialista visitante do norte-americano Woodrow Wilson Center.

Outro processo de alto impacto foi o do ex-presidente Affonso Portillo, extraditado para os Estados Unidos para enfrentar acusações de conspiração para lavagem de dinheiro durante seu mandato (2000-2004). O Tribunal de Constitucionalidade autorizou extraditar Portillo em 2011, mas ainda há recursos legais pendentes em tribunais guatemaltecos, o que gera dúvidas sobre a legalidade da medida. “A extradição de Portillo foi apressada, houve muitos atropelos”, disse à IPS o investigador Lizandro Acuña, da área de justiça e segurança do Instituto de Problemas Nacionais da Universidade de San Carlos.

Enquanto isso, o julgamento contra Montt segue pendente. O Ministério Público apresentou perícias e testemunhos para demonstrar que durante os 17 meses de sua presidência (1982-1983) foi cometido genocídio contra o povo maia ixil. As acusações incluem o assassinato de 1.771 ixiles, 1.485 violações sexuais de meninas e mulheres, além de outras humilhações e atrocidades.

Em maio, a justiça condenou Montt a 80 anos de prisão. Contudo, o Tribunal de Constitucionalidade anulou a sentença dez dias depois e ordenou repetir a última parte do processo. O julgamento polarizou a opinião pública entre os que defendem as ações do exército e os que exigem justiça para as vítimas. É que os fatos julgados aconteceram no contexto de uma guerra civil (1960-1996) que deixou 250 mil mortos, a grande maioria de indígenas.

Ricardo Méndez Ruiz, presidente da direitista Fundação Contra o Terrorismo, integrada por militares da reserva e seus familiares, acusa Paz y Paz de “desatar uma caça contra os soldados”. Em 2011, Méndez Ruiz apresentou uma demanda contra 26 ex-integrantes do Exército Guerrilheiro dos Pobres – que atuara durante o conflito armado –, incluindo duas primas da promotora geral: Margarita e Laura Hurtado Paz y Paz, sob a acusação de tê-lo sequestrado em 1982.

Porém, Paz y Paz retrucou que esclarecer as violações de direitos humanos cometidas durante o conflito armado “não é ser parcial, mas responsável com as obrigações assumidas como promotora geral”. O processo contra Montt deve ser reaberto em abril de 2014, em meio à incerteza de vítimas e sobreviventes que testemunharam e que sofrem pressões e ameaças.

A promotora geral prefere não anunciar se voltará a se candidatar ao cargo. Insiste que está em meio à tarefa de institucionalizar as mudanças no Ministério Público. Porém, alerta que, se o sucessor não estiver disposto a continuar este trabalho, os progressos virão abaixo.

“Ela fez um enorme esforço para que a instituição também seja importante. A pergunta é se quando partir a instituição será capaz de resistir à sua ausência”, destacou Garzón. “Em que vão apostar as forças dentro do sistema político? Desbaratar o que fez o Ministério Público ou seguir com o caminho iniciado?”, perguntou. “É uma decisão política, e o cenário é muito incerto”, enfatizou Garzón. Envolverde/IPS