Somente num mundo de cabeça para baixo o futebol poderia ser usado como um instrumento de islamofobia.
O futebol é o grande jogo global: a coisa mais próxima que temos de um tecido cultural conectivo, que une nossa espécie para além das fronteiras nacionais e culturais. Mas só num mundo de cabeça para baixo poderia o “Grande Jogo” ser administrado por uma organização tão corrupta quanto a Fifa e por um homem podre até a raiz como o presidente da Fifa, Sepp Blatter. Somente Blatter, cuja reputação por degeneração se aproxima de lenda, contrataria um criminoso de guerra como Henry Kissinger para presidir “um comitê de pessoas sábias” voltado a “acabar com a corrupção” em sua organização. E somente esses dois avatares gêmeos de amoralidade usariam o “Grande Jogo” como um instrumento de islamofobia.
No domingo, 6, momentos antes do time feminino do Irã entrar em campo para jogar pelas eliminatórias das Olimpíadas contra a Jordânia, o time foi desclassificado por usar seu tradicional uniforme de corpo inteiro e seus hijabs. À Jordânia foi dada uma vitória por 3 a 0 por falta, destruindo as chances do elogiado time iraniano de ir aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012.
Enquanto as jogadoras e as autoridades iranianas se opunham entre lágrimas, lhes foi avisado que haviam violado a regra da Fifa que dizia que: “jogadores e comissão técnica não devem exibir mensagens ou slogans políticos, religiosos, comerciais ou pessoais em qualquer língua ou forma, em seus uniformes e equipamentos”. O time iraniano também foi informado de que desde 2007 a Fifa defende que a utilização de hijabs durante o jogo “pode causar lesões por asfixia”.
Há dois problemas com este argumento. O primeiro é que ele é burro. “Mortes por asfixia causada por hijabs no futebol” não é uma expressão que faz o mecanismo de pesquisa do Google disparar. Mas, mais problemático ainda é que o time já havia recebido confirmações da Fifa de que os uniformes estavam de acordo. O time iraniano já havia até mesmo jogado partidas preliminares sem sequer um pio de Blatter.
O diretor de futebol feminino do Irã, Farideh Shojaei, disse à TV Reuters numa entrevista: “Nós fizemos as correções necessárias e disputamos uma partida em seguida. Jogamos a rodada seguinte e não fomos impedidos de fazê-lo, e eles não encontraram nenhuma irregularidade. Aquilo significou que não havia obstáculos em nosso caminho, e que poderíamos participar das Olimpíadas… Este [uniforme] não é religioso, nem político, nem mesmo causará lesões aos jogadores… E o Sr. Sepp Blatter aceitou isto.”
Então o que realmente está ocorrendo aqui? Primeiro de tudo, deveríamos desconsiderar qualquer preocupação da Fifa pelo bem-estar das mulheres envolvidas. Blatter é um sexista irremediável e, se não houvesse resistência, o futebol feminino pareceria a Liga de Futebol de Lingerie. Os mesmos homens que baniram o hijab propuseram, em 2004, que as mulheres usassem “calças justas”, na busca pela popularização do esporte. Ele disse que “shorts curtos” produziriam uma “estética mais feminina”.
Além disso, durante anos, organizações de direitos humanos têm questionado Blatter para que ele se posicione e diga algo a respeito do assustador fluxo de tráfico sexual que acompanha a chegada da Copa do Mundo. A fria resposta de Blatter: “Prostituição de tráfico de mulheres não cabem na esfera de responsabilidade de uma federação internacional de esportes, mas sim na das autoridades e juristas dos países”. Em outras palavras, ele não é exatamente Susan Faludi.
Reciprocamente, ao negar ao time iraniano a oportunidade de mostrar seus gênios em uniformes muçulmanos completos, Blatter se torna um agente de sua opressão. Como escreveu Alyssa Rosenberg ao Think Progress: “Se estamos realmente preocupados sobre como as mulheres são percebidas e tratadas nas comunidades muçulmanas, parece imensamente contraproducente adotar políticas que forcem mulheres a escolher entre respeitar os princípios de sua fé ou participar em atividades que lhes permitam demonstrar sua proeza física e inteligência estratégica”.
Eu adicionaria que a decisão de Blatter só alimenta a profunda ignorância ocidental no que tange à posição das mulheres iranianas desde a revolução islâmica de 1979. A taxa de alfabetização de mulheres antes de 1979 era de 35%. Agora está acima dos 75%. Nos tempos do Xá, somente um terço das mulheres estava em instituições de ensino superior. Agora este número está acima de 50%. Um a cada três médicos iranianos é mulher. Nos Estados Unidos, este número é de um a cada cinco.
A nova presença de Henry Kissinger, perdoe a expressão, desvela sobre o que se trata todo este teatro-kabuki. Kissinger não foi contido sobre seu ponto de vista do Irã, abertamente chamando à guerra e dizendo: “Nós devemos trabalhar para uma mudança de regime, externamente”. Dado o modo como os direitos das mulheres foram usados como uma falsa questão para justificar a guerra contra o mundo muçulmano, trata-se agora de perpetuar o estereótipo da donzela muçulmana em perigo, negando a estas próprias mulheres uma presença poderosa e visível no cenário internacional. Trata-se de isolar o Irã para que continuem soando os tambores da guerra. Mas, acima de tudo, no fundo, trata-se de Kissinger – e Blatter, usando esportes para seus fins políticos.
Aqueles que clamam que “esportes e política” deveriam ser mantidos separados quando atletas se atrevem a expressar suas opiniões, deveriam voltar seus ultrajes em direção a Blatter, Kissinger, e a decisão da Fifa de enxergar o futebol como uma ferramenta para marginalizar as mulheres muçulmanas. Deveríamos exigir que a Fifa revogasse estas punições e aderisse às três palavras que deveriam unir todos os campeonatos, todos os países, e todas as pessoas que acreditam que o esporte possa refletir o melhor de nossa espécie: Deixe-as jogar.
* Tradução: Cainã Vidor.
** Publicado originalmente na Al-Jazeera e reirado do site da Revista Fórum.