Arquivo

Mulheres invisíveis na Birmânia

Rangun, Birmânia, 9/5/2012 – A ativista pró-democrática Aung San Suu Kyi é um ícone na Birmânia, mas sua situação está longe de ser a da maioria das mulheres deste país de tradição budista e governado por um regime militar há várias décadas. “Sua imagem sugere que há espaço para as mulheres”, observou Ma Thida, cirurgiã e diretora do semanário Myanmar Independent, publicado em Rangun. “É um grande exemplo para as birmanesas”, disse à IPS. Myanmar é o nome dado pela junta governante à Birmânia.

Ma Thida foi condenada a 20 anos de prisão em 1993, por “colocar em perigo a paz pública, manter contato com organizações ilegais e distribuir panfletos ilícitos”, segundo afirma a sentença. Foi libertada cinco anos depois. “A situação geral parece melhor do que há dois ou três anos, mas está longe de ser ideal”, indicou a médica, uma das milhares de mulheres que contribuíram para promover mudanças a favor de um regime democrático na Birmânia.

A Associação de Assistência a Presos Políticos, criada por ex-presos exilados, declarou que há 18 mulheres entre as 473 pessoas nessa situação. A organização fica na cidade tailandesa de Mae Sot, na fronteira com a Birmânia, país este que ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), mas cuja Constituição de 2008 não a contempla totalmente.

“Atualmente, não podemos falar nem discutir livremente sobre discriminação ou igualdade de gênero”, afirmou uma defensora dos direitos das mulheres que pediu para não ser identificada devido à sua participação em manifestações contra a construção, agora suspensa, da controversa represa de Myitsone, no Rio Irrawaddy, norte da Birmânia. “A decisão de interromper as obras, aplaudida por organizações ambientalistas, foi resultado de protestos feitos principalmente por mulheres”, ressaltou.

“Quando a imprensa birmanesa informou sobre a suspensão da construção, as mulheres desapareceram porque pediram a elas que se sentassem no chão enquanto as câmaras filmavam as autoridades. Existe uma ampla presença de mulheres em nossa sociedade, mas ainda são invisíveis”, contou a ativista.

A escritora e defensora dos direitos femininos Mon Mon Myat explicou à IPS que “às vezes não é fácil apresentar estes assuntos, mesmo dentro das organizações femininas, pois a maioria das mulheres pensa que seu papel está na família e que isto não pode mudar”. Acrescentou que “em uma sociedade budista theravada, dominada por homens, há muitas barreiras culturais que limitam o comportamento das mulheres”.

“As jornalistas, por exemplo, não podem fotografar nem filmar o público pois não lhes é permitido ter uma posição privilegiada porque, na qualidade de mulheres, não podem estar acima dos homens nem dos monges budistas”, detalhou Myat. A barreira cultural é um contraste enorme das imagens de Suu Kyi saudando ou falando com as pessoas da sacada de sua casa ou de um escritório de seu partido.

Ela é uma exceção, segundo Myat, por ser filha de Aung San (1915-1947), venerado herói nacional vinculado ao movimento independentista da Birmânia. De fato, Suu Kyi tem o cuidado de colocar o nome de seu pai à frente do seu, embora o costume seja as mulheres usarem apenas seu nome, sem adotar o do pai nem o do marido. “Apesar de ser mulher, é símbolo de paz e democracia em nosso país. Por isto, podemos ver uma multidão de monges e homens de poder expressando seu apoio a ela”, acrescentou Myat.

“A perspectiva do país deve mudar se deseja ser democrático, mas, para isto, primeiro deve haver maior liberdade na mídia”, opinou Vic, pseudônimo de uma escritora. As ativistas e jornalistas que se atreveram a se opor à junta militar governante pagaram o alto preço da tortura sistemática ou foram assassinadas por soldados do exército durante a prolongada guerra contra as milícias nos Estados das comunidades étnicas shan, kachim e karen.

Em 2002, a Rede de Ação de Mulheres Shan denunciou o uso sistemático da violação por parte de soldados em um relatório para o qual conseguiram que mulheres contassem suas experiências. “Ainda não se pode falar livremente sobre violações de mulheres de minorias étnicas em zonas distantes e cometidas por soldados birmaneses”, lamentou Myat.

Muitas vezes, as mulheres não costumam considerar a violação como um assunto de discriminação de gênero, mas como um problema do “destino de uma sociedade que vê com olhos ruins o sexo fraco com roupas inapropriadas ou indo a lugares inadequados”, afirmou Myat. “As famílias preferem se calar, fazendo com que seja mais difícil para as vítimas a busca por justiça nos tribunais”, acrescentou.

A Liga de Mulheres da Birmânia é uma organização que reúne mulheres de 13 grupos étnicos que “trabalham pelo avanço do status das mulheres com vistas a uma sociedade pacífica e justa”, disse Myat. “A mudança de mentalidade, em especial entre administradores de nível médio e as pessoas comuns é essencial”, afirmou Grace Swe Zin Htaik, atriz dedicada a questões de saúde e gênero. “Falta muito tempo para conseguirmos a igualdade de gênero na Birmânia”, declarou à IPS.

Apesar de estarem mal representadas em órgãos legislativos e cargos de governo, mulheres com Myat confiam no futuro porque superam em número os homens neste país de 55 milhões de habitantes. Também recordam os tempos anteriores ao de colônia britânica (1824-1948) quando a Birmânia tinha um sistema matriarcal e as mulheres possuíam o direito de serem proprietárias e ocuparem altos cargos. Envolverde/IPS