Mumbai, Índia, 5/3/2015 – “Uma vez meu marido começou a me esbofetear tão forte, porque não havia cozinhado o arroz como ele gostava, que o bebê que eu tinha nos braços caiu”, contou Suruchi, de 47 anos, à IPS. Histórias iguais a essa, há milhões na Índia. Durante 20 anos, Suruchi suportou agressões físicas e verbais dentro de sua casa. Seu marido costumava deixá-la do lado de fora do apartamento à noite e, inclusive, um dia tentou estrangulá-la.
“Nunca sabia o que poderia deixá-lo furioso, podia ser falar com um vizinho ou olhar pela janela. Pela manhã me preparava para ir trabalhar e, de repente, ele anunciava que eu tinha que ficar em casa o dia todo”, contou Suruchi, que mora Mumbai, grande cidade costeira da Índia. Ela não tinha acesso às economias, porque era obrigada a entregar o salário à família de seu marido. “Nas raras ocasiões em que me queixei, me bateram”, recordou.
Seus pais se davam conta de que não era feliz, mas Suruchi nunca lhes contou toda a história. Tinha apenas 20 anos quando se casou. A violência constante deixou profundas marcas nela e nos filhos, em especial no rapaz que sofre de ansiedade e é muito pouco comunicativo.
Mas, no dia em que sofreu uma crise nervosa depois de um episódio mais violento do que o habitual, decidiu dar um basta à situação. “Tinha esperanças de que, se o obedecesse, as coisas melhorariam. Enquanto me recuperava no hospital, compreendi que minha atitude fomentava o abuso e que deveria me afastar, por mim e por meus filhos”, contou à IPS.
Suruchi conseguiu deixar o passado para trás. Agora é independente e estuda direito, mas nem todas as vítimas de violência dentro da família conseguem isso. A última pesquisa familiar, de 2006, mostra que 40% das mulheres indianas sofrem violência dentro de suas casas. A população feminina constitui 48% dos 1,2 bilhão de habitantes da Índia, assim, centenas de milhões de mulheres vivem um pesadelo em suas casas em uma das consideradas maiores democracias do mundo.
Porém, muitos especialistas estimam que um estudo realizado em 2003 por uma organização sem fins lucrativos, com apoio da Comissão de Planejamento da Índia, é muito mais realista ao elevar a proporção de mulheres maltratadas a 84%. Isso “nos diz que há muitos casos não denunciados”, afirmou Rashmi Anand, uma sobrevivente de violência dentro da família e encarregada de um serviço de ajuda e assistência legal, com apoio da polícia, para mulheres vítimas de maus tratos em Nova Délhi.
É interessante que os números dessa violência, que aparecem nas estatísticas de crimes em muitos Estados, sejam significativamente maiores do que as que figuram em escala nacional.
Um estudo de 2013, do Conselho Nacional de Pesquisa sobre Economia Aplicada, com sede em Nova Délhi, diz que as mulheres casadas consultadas disseram apanhar por sair de casa sem permissão (54%), por não cozinhar bem (35%) e por pagamento insuficiente do dote (36%). O dote está proibido por lei, mas continua sendo uma prática muito generalizada na Índia.
Outra pesquisa, de 2014, da revista Population and Development Review, mostra que as mulheres com maior formação do que seus maridos correm um risco maior de serem maltratadas, pois os homens recorrem à violência para reforçar seu poder e seu controle sobre elas.
Em 1983, a violência dentro da família foi reconhecida como crime no artigo 498-A do Código Penal. Mas somente em 2005 foi aprovada uma lei específica contra esse flagelo. A lei, entre outras coisas, define a violência dentro do lar e amplia seu alcance para abuso verbal, econômico e emocional. Também leva em conta a necessidade de apoio econômico para as mulheres, as protege de serem expulsas de casa e dispõe sobre assistência econômica e custódia temporária dos filhos.
Desde a aprovação dessa lei, houve aumento no número de mulheres que buscam ajuda. “Antes, as mulheres só procuravam ajuda legal quando eram postas para fora de suas casas”, explicou C. P. Nautiyal, que apoia vítimas de violência dentro da família em Nova Délhi. “A maioria das mulheres pensava ser um comportamento aceitável sofrer abuso verbal ou receber bofetadas do marido. Desde a aprovação da lei, há maior consciência sobre a violência no lar”, acrescentou.
Mas ainda existe um estigma vinculado ao status de divorciada, o que impede que muitas procurem ajuda. “Em matéria econômica, as mulheres conseguiram grandes progressos, mas não é bem assim no tocante ao seu crescimento pessoal”, pontuou Anand. “Há muita pressão para que continuem casadas”, concordou a advogada Flavia Agnes, defensora dos direitos das mulheres. “Mesmo as mulheres de classe alta não gostam de dizer que estão divorciadas ou separadas. É como ser violada, vão esconder o máximo que puderem”, ressaltou.
As mulheres com menos capacitação e menos privilégios são as que mais pedem ajuda, afirmam especialistas. E é em relação a elas que o sistema mais falha. O que mais se percebe é a inexistência de abrigos estatais adequados. “Fico procurando lugares para onde enviar mulheres pobres e maltratadas”, lamentou Anand. Dos cinco abrigos para situações de crise em Nova Délhi, apenas dois funcionam. E estes podem abrigar apenas 30 mulheres, somente por um mês e só com seus filhos menores de sete anos.
Também é urgente a necessidade de contar com tribunais rápidos. A justiça é lenta, o processo pode demorar anos e até décadas. Só com leis não se pode conter a violência dentro de casa, avivada por comportamentos arraigados em uma sociedade fortemente patriarcal. A última Pesquisa Nacional de Saúde Familiar, de 2006, mostra que mais de 51% dos homens consultados declararam que não lhes parecia errado bater em suas esposas. E, pior, 54% das mulheres entrevistadas afirmaram que em certas circunstâncias os maus tratos se justificavam. Envolverde/IPS
* Esta reportagem faz parte de uma série de artigos elaborados pela IPS por ocasião do Dia Internacional da Mulher.