Utilizar canções como ponto de partida para debater problemas cotidianos pelos quais os médicos passam, seja na vida profissional ou na pessoal. Esta é a proposta de um recente estudo desenvolvido pelo pesquisador Marco Aurelio Janaudis, da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP), a partir de aulas e entrevistas com alunos do internato médico da Faculdade de Medicina de Jundiaí, no interior de São Paulo. “A música tem o poder de funcionar como um facilitador do diálogo, fazendo o aluno perceber que pode falar de outras coisas, não ficando fechado apenas nas discussões técnicas”, explica o médico.
De acordo com ele, um dos maiores benefícios da música como instrumento pedagógico é auxiliar na humanização da carreira médica, uma questão que vêm sendo muito debatida recentemente. “Logo que entra no curso, o estudante de medicina tem uma vontade muito grande de ajudar os pacientes. Porém, esse contato só acontecerá quando ele já estiver no final da graduação, o que volta sua preocupação para a técnica, de maneira que muitas vezes ele até esquece os valores que o fizeram chegar até ali”, diz Janaudis. “A arte traz o estudante de volta para essa atmosfera reflexiva, que não é costumeiramente encontrada na academia durante a graduação”, completa.
O médico e professor ainda afirma que o paralelo com a música pode trazer um benefício prático para os alunos de medicina no que diz respeito ao trato com os pacientes. “Estamos numa época que ouvimos música por ouvir. Entretanto, quando fizemos a experiência, os alunos prestaram mais atenção na música, pararam para ouvir as letras, entenderam as mensagens, procuraram refletir sobre isso. Isto também se reflete com os pacientes: eles passam a ouvi-los melhor, conseguindo compreender o que pode haver por trás do ritmo, da cadência e da expressividade da voz de cada um”, diz Janaudis.
Emoções marcantes
A pesquisa foi feita com base nas experiências relatadas por doze estudantes do módulo em Medicina de Família do internato médico, em entrevistas que foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas. “Não tive método preestabelecido para selecionar as músicas, o que gerou um repertório variado: de Elvis a Chico Buarque, passando por Julio Iglesias e 14 Bis. Todas elas, entretanto, tinham de me tocar, de me emocionar, de me dizer alguma coisa capaz de ser usada em sala. Por exemplo, ‘Ciranda da Bailarina’, de Chico Buarque e Edu Lobo, foi um ótimo exemplo para mostrar como os pacientes podem ver os médicos, às vezes”, conta o médico. Após algum tempo, Janaudis narra que os alunos passaram a também contribuir para a aula trazendo outras músicas, numa via de duas mãos.
Janaudis rememora algumas situações marcantes, como a de uma aluna que passou a conviver e entender melhor a morte do avô depois de refletir sobre a canção “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento. “Teve também o caso de uma garota que disse que não achava que os colegas teriam nível para fazer uma reflexão significativa como a que fizemos depois de ouvir uma canção. O contato com a música não se relaciona apenas com a formação como médico, mas também como ser humano”, diz o médico.
Formação humanista
A experiência causou nos alunos a percepção de que a formação humanista precisa ser mais abordada. “Não é preciso uma cadeira específica para discutir o assunto. O ideal é que a humanização permeasse as disciplinas, uma vez que cada professor serve como exemplo (ou contra exemplo) para algum aluno.” Para o pesquisador, é preciso que exista uma mudança de postura tanto da parte dos alunos quanto dos docentes. “Eu, enquanto professor, também preciso entender o contexto que o aluno vive, muitas vezes morando fora de casa, longe dos pais, com angústias, medos e saudades”, resume Janaudis.
A tese de doutorado A Música como Instrumento de Reflexão para o Estudante de Medicina, e foi orientada pelo professor Paulo Andrade Lotufo, na Faculdade de Medicina da USP (FM-USP). A defesa aconteceu no dia 4 de março de 2011.
* Publicado originalmente no site Agência USP.