Nada como a seca para resolver a seca

Foto: UN Photo/Martine Perret
Foto: UN Photo/Martine Perret

 

A falta de chuvas no Sudeste está sendo a salvação da lavoura. Soluções de gestão sustentável da água estão sendo adotadas em escala nunca vista. Em razão da crise hídrica, a Prefeitura de Campinas será a primeira do país a utilizar água de reuso no abastecimento. As Estações de Tratamento de Esgoto adicionarão 870 m³/s de água aos rios Capivari e Atibaia.

Novas tecnologias, como membranas ultrafiltrantes, eliminam o uso de produtos químicos e garantem água com alto grau de pureza nas Estações Produtoras de Água de Reuso (EPARs), a partir do esgoto tratado. O Estado de São Paulo inaugurará em 2015 duas EPARs na represa de Guarapiranga. A ampliação em ritmo de urgência da capacidade da Estação de Tratamento de Água na Guarapiranga ampliou neste final de ano sua capacidade de contribuir no atendimento adicional de 300.000 habitantes do sistema Cantareira, aliviando a demanda nesse momento crítico.

Essa água de reuso custa o dobro do preço do método convencional de captação. Mas é uma necessidade. O preço da água precisa ser rediscutido para que diminua o desperdício e ocorra uma maior capitalização das empresas de saneamento. Elas precisam de recursos para investir no tratamento de esgoto, na perfuração de poços, em novas armazenagens e captações, na redução de perdas na rede e na produção de água de reuso. As empresas de saneamento precisam da isenção da Cofins e do PIS pelo Governo Federal. Muitos municípios no Brasil seguiriam o exemplo de Campinas, que procede como na África do Sul, Austrália, Estados Unidos, Singapura e Namíbia. Chega de tributar a água!

A seca e as inovações tecnológicas ampliaram a cultura do reuso. Empresas, shoppings e pequenas indústrias instalaram estações, de poucos metros quadrados, para tratar o próprio esgoto e gerar a água de reuso. O potencial é enorme: só se reutiliza 4% do esgoto tratado.

A crise hídrica provocou avanços inimagináveis nos hábitos de consumo e na gestão da água, com uso de tecnologias que, de outra forma, teriam demorado a serem adotadas. No Rio de Janeiro virou Lei: todos os condomínios novos, residenciais ou comerciais, são obrigados a ter sistemas de medição individual de consumo de água. O sistema traz uma economia na conta de água de 40 a 50%. E também na energia elétrica: as bombas trabalham bem menos. O avanço seria maior se houvesse distribuição gratuita de medidores individuais, como na Califórnia.

Redutores de vazão em torneiras e chuveiros estão sendo instalados em casas, escolas, clubes restaurantes, bebedouros etc. Nos banheiros, as caixas acopladas são mais econômicas do que as de válvula. Por um custo pequeno dá para colocar dispositivos de duplo acionamento ou temporizadores para regular a vazão na descarga de parede.
Além de fechar a torneira ao escovar os dentes, de reduzir o tempo no chuveiro e fechá-lo ao ensaboar-se, a regra é só ligar a máquina de lavar com capacidade total. Restaurantes eliminaram a lavagem com o uso de copos, pratos e até talheres descartáveis. E escolhem material de qualidade adequada para enviar à reciclagem.

Aumentou a compra de mantas para cobrir piscinas e reduzir a perda d’água por evaporação. Alguns condomínios fecharam piscinas e adotaram rodízio voluntário. A economia de água é premiada em São Paulo: a redução de 20% se traduz por 30% a menos na conta e o bônus é progressivo a partir de uma economia de 10%.

Cresceu o mercado de lavagem a seco de carros com produtos químicos. Postos são obrigados a usar fontes alternativas de água para lavagem e estão impedidos de empregar água da rede pública. Que diferença em relação aos anos 1990, quando um lava-rápido precisou entrar na Justiça pelo direito de usar água de chuva. Agora existe até um mercado de kits de captação em telhados, com filtragem e recirculação da água pós-lavagem.

A utilização da água de chuva em instalações sanitárias e irrigação de jardins está em alta. Tem muita gente instalando cisternas em casas, indústrias e comércios. Produtores de flores e plantas na região de Holambra têm sofisticados sistemas de recirculação do vapor usados na climatização em estufas e de captação de água da chuva.

Os consumidores estão mais atentos para detectar vazamentos em tubulações, caixas d´água e reservatórios. Qualquer abuso ou vazamento é rapidamente denunciado. Nunca a população fiscalizou e denunciou tanto.

Educação no uso da água implica punir desperdícios. Novas leis municipais preveem multas, corte de água e obrigam o infrator a fazer curso sobre uso racional da água. Adesivos e mensagens educativas lembram a todos a necessidade do bom uso da água, em elevadores, entradas de prédios, restaurantes etc.

Em São Paulo adiantaram-se medidas previstas para aumentar a captação e armazenagem de água. Prefeituras implantaram novas captações em córregos e rios, até então não utilizados e constroem reservatórios, interligados por adutoras a outros já existentes em área rural. Eles abastecerão cidades de porte médio por um a três meses, em tempo de seca.

Com a crise hídrica acelerou-se a construção de novos sistemas, como o São Lourenço, para abastecer a capital. A modernização de equipamentos de filtragem, o aumento da capacidade de tratamento e as estações elevatórias ampliarão a vazão e o atendimento na interligação de reservatórios, como no Sistema Guarapiranga e Rio Grande. Projetos de novas adutoras para transpor bacias entre municípios e no próprio município saíram, enfim, do papel, como o do Rio Jaguari para Campinas.

A crise levou à água subterrânea. A Prefeitura de São Paulo abriu licitação para construir de 32 poços artesianos em todas as subprefeituras. Empresas de saneamento isentam da taxa de esgoto quem captar em poço artesiano. Na região metropolitana de São Paulo cerca de 400 poços foram construídos em 2014, juntando-se 2.082 poços outorgados na capital. Atestadamente, alguns recuperam parte da água perdida nas tubulações da Sabesp. Com a crise, os programas de redução de perdas de água ganharam força. As companhias de saneamento contrataram diagnósticos para apontar causas de perdas e buscam implantar soluções, nos limites de seus recursos.

A seca trouxe a oportunidade para prefeituras e moradores removerem toneladas de lixo e entulho acumulados em rios e represas. E trouxe à luz a urgência de mudanças de comportamento dos cidadãos. Parte do comportamento responsável para com a água será abandonada com a volta das chuvas, é verdade. Mas os novos sistemas de uso sustentável da água não serão removidos e as novas tecnologias não têm caminho de volta para as gavetas. Governos, educadores e ambientalistas devem aproveitar o momento para consolidar o avanço criado pela necessidade.

Bendita seca!

* Evaristo Eduardo de Miranda é pesquisador e coordenador do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica da Embrapa.

** Publicado originalmenten o site Eco21.