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“Não podemos aceitar migalhas em direitos sexuais e reprodutivos”

Mariela Castro participa da conferência de população e desenvolvimento em Montevidéu. Foto: David Puig/UNFPA
Mariela Castro participa da conferência de população e desenvolvimento em Montevidéu. Foto: David Puig/UNFPA

 

Montevidéu, Uruguai, 15/8/2013 – A região da América Latina e do Caribe não pode aspirar verdadeiras políticas de saúde progressistas enquanto continuar considerando ilegal o direito das mulheres decidirem a interrupção de sua gravidez, afirmou a cubana Mariela Castro. “Muitas mulheres da região ainda serem obrigadas a optar entre a prisão ou a morte me parece vergonhoso”, acrescentou.

Castro, diretora do Centro Nacional de Educação Sexual de Cuba (Cenesex), afirmou em entrevista à IPS que é realizada uma “caça às bruxas” contra as mulheres latino-americanas e caribenhas em países com governos “autodenominados” democráticos.

Esta sexóloga, filha do presidente cubano, Raúl Castro, integra o Grupo de Trabalho de Alto Nível para a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. E está em Montevidéu para participar da I Reunião da Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, que começou no dia 12 e termina hoje.

Como diretora do Cenesex, Castro lidera em seu país campanhas contra a aids e pelos direitos da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT). Graças a um projeto que ela apresentou, Cuba foi o primeiro país onde as pessoas transgênero puderam ter acesso a cirurgias legais e gratuitas de mudança de sexo.

IPS: Quais os principais avanços de Cuba em saúde sexual e reprodutiva e em educação sexual?

MARIELA CASTRO: Há um trabalho muito importante iniciado pela Federação de Mulheres Cubanas na década de 1960. Já em 1965 se estabeleceu o aborto como um serviço do sistema nacional de saúde pública, gratuito, realizado por mãos especialistas, em instituições do sistema de saúde e sob o consentimento da mulher. O aborto existia em Cuba desde antes da Revolução (1959), mas era um serviço muito caro em clínicas particulares. Era uma das causas que provocava a mortalidade das mulheres porque era realizado em condições de alto risco, clandestinas. O Estado cubano decidiu então estabelecê-lo como um serviço do sistema de saúde pública. Não existe uma lei sobre o aborto. Foi estabelecido por uma resolução do Ministério da Saúde. Em 1964, foi criado o Programa Nacional de Planejamento Familiar e, em 1972, começou a ser preparado o Programa Nacional de Educação Sexual. Em 1975, quando aconteceu o primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba, ficou estabelecida a educação sexual como política de Estado, dando a prioridade da responsabilidade à família e à escola. Entre 1988 e 1989, foi constituído o Centro Nacional de Educação Sexual do Ministério de Saúde Pública.

IPS: Qual a situação hoje em Cuba quanto ao respeito à diversidade sexual?

MC: Cuba, como todos os demais países no mundo, reproduziu os esquemas homofóbicos que as culturas e as ciências ajudaram a impor também. As ciências médicas impuseram que a homossexualidade era uma doença e que se deveria submeter a terapias para converter essas pessoas em heterossexuais. Somente em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde “despatologizou” a homossexualidade. Meu país foi homofóbico como todos, mas se exagera tudo o que é dito sobre Cuba nesse sentido. Todo o cenário de desenvolver um projeto baseado nos princípios de justiça e igualdade social e solidariedade entre os seres humanos criou as bases para que, a partir do mesmo projeto revolucionário, continuássemos aprofundando nas lutas contra as discriminações. Em janeiro de 2012, quando da conferência do Partido Comunista, incluiu-se pela primeira vez o objetivo de lutar contra todas as formas de discriminação, incluindo a orientação sexual e identidade de gênero.

IPS: Qual a contribuição que Cuba pode dar ao restante da América Latina e do Caribe?

MC: O Cenesex convocou no ano passado uma reunião de especialistas latino-americanos e caribenhos em educação integral da sexualidade a fim de compartilhar experiências e estabelecer alianças para que estes temas avancem na região, e aprovamos uma declaração. Também queremos intercambiar materiais e informações. Temos conhecimento das novas legislações na região para que também possamos tomar elementos que possam nos ser úteis.

IPS: Na América Latina foram dados passos importantes para o casamento igualitário. Qual é a situação em Cuba?

MC: Me sinto muito orgulhosa como latino-americana pelo fato de Argentina, Uruguai e o Distrito Federal do México já terem uma legislação que ampara esses direitos. Me parece fascinante. O que promovo constantemente é que isto ocorra em outros países, e também em Cuba. O que acontece é que em meu país o casamento não é considerado algo muito importante, já que a maioria dos casais vive em relações de convivência que gozam dos mesmos direitos que em um matrimônio. Assim, o movimento LGBT não enfatiza isso, e se interessa mais pela defesa de seus direitos patrimoniais. Porém, se vamos falar de direitos temos que falar das mesmas oportunidades, incluindo o casamento.

IPS: Qual deve ser o papel da mídia na educação sexual?

MC: Eu promovo uma estratégia de educação permanente acompanhada de uma comunicação permanente. Capacitamos jornalistas, comunicadores e artistas o tempo todo. Um exemplo do problema de que os meios de comunicação não estão preparados para abordar o tema foi o que aconteceu em 1988. Naquele ano aconteceu a primeira operação gratuita de mudança de sexo em Cuba. Os médicos que fizeram a experiência a apresentaram em um congresso. Um jornalista presente ali noticiou esse fato e gerou-se um debate. Muitas pessoas enviaram cartas ao governo dizendo que era uma barbaridade. O Ministério da Saúde, que então não tinhas ferramentas suficientes para se defender, decidiu suspender as operações. Foi necessário esperar 20 anos. Hoje somos o único país que tem uma estratégia de atenção integral às pessoas transexuais, com um serviço gratuito especializado de saúde para fazer as transformações necessárias em seu corpo a fim de adequá-lo à sua identidade de gênero. Além disso, há uma estratégia geral de modificação das políticas, da consciência e das leis para que se respeite as pessoas transexuais.

IPS: Quais as suas expectativas para esta conferência em Montevidéu?

MC: É muito importante para nossa região conseguirmos ao menos uma declaração na qual se pronunciem pelo respeito, pela proteção e pelo cumprimento dos direitos sexuais reprodutivos. Queremos que esta conferência se pronuncie pelo acesso a informação, educação e serviços de qualidade, para que todos os jovens tenham acesso universal à educação sexual, dentro e fora da escola. Não podemos aceitar migalhas em matéria de direitos. Não podemos esperar nada avançado nem progressista de nossa região se em temas como estes não conseguirmos estabelecer acordos.

IPS: E quanto ao aborto?

MC: Fico arrepiada quando vejo que em nosso continente somente Cuba, Guiana e agora Uruguai têm leis que respeitam o direito da mulher decidir sobre seu corpo em situações de saúde reprodutiva, como é a interrupção voluntária da gravidez. Isso me soa como caça às bruxas. Muitas mulheres da região ainda serem obrigadas a decidir entre a prisão ou a morte me parece vergonhoso, bem como países que se autodenominam democráticos falarem de democracia sem avançar em temas como estes. Envolverde/IPS