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Não são apenas os mortos que voltam à Síria

Embarcando para a Síria no posto de fronteira de Peshjabur. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Embarcando para a Síria no posto de fronteira de Peshjabur. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Derik, Síria, 3/10/2013 – Após fugir da guerra há três meses, Gulnaz voltou à Síria para enterrar seu irmão no prazo de 24 horas estipulado pelo Islã. Mas, não é tarefa fácil trasladar o caixão desde a margem iraquiana através do rio Jabur. Situada 460 quilômetros a noroeste de Bagdá, a pequena localidade curda de Peshjabur registra há meses um tráfego incomum de pessoas. Embora na maioria sejam refugiados procedentes da Síria, as circunstâncias obrigam alguns deles a retornar.

No caso de Gulnaz, impactada pela dor, um jovem que a acompanhava dá os detalhes. “Fugimos da Síria em julho, após a ofensiva dos islâmicos, para nos refugiarmos em Erbil”, a capital administrativa do Curdistão Iraquiano, 390 quilômetros ao norte de Bagdá, explicou à IPS enquanto esperava, impaciente, que os policiais de fronteira curdo-iraquianos conferissem a documentação. “A má sorte quis que o irmão dela morresse em um acidente de carro”, contou o jovem.

O complexo de edifícios, a partir dos quais se gerencia o tráfego transfronteiriço, pouco difere do de qualquer outra aduana: soldados uniformizados revistam as bagagens enquanto funcionários localizados atrás de uma pequena janela colocam os dados em seus computadores. Após espera de uma hora, é a falta de um selo novo no passaporte que revela a singular natureza deste controle migratório.

Não em vão, nos encontramos na fronteira entre a Região Autônoma Curda do Iraque, o mais parecido a um país que jamais os curdos tiveram, e a região síria nordeste, hoje sob controle de fato dos curdos da Síria. Divididos pelas fronteiras de Irã, Iraque, Síria e Turquia, cerca de 40 milhões de curdos formam atualmente a maior nação sem Estado do mundo.

Desde o começo da revolta, em março de 2011, os curdos da Síria – entre três e quatro milhões – optaram por uma “terceira” via: nem com o presidente Bashar al Assad nem com a oposição árabe. Em julho de 2012, conseguiram assumir o controle das zonas onde habitam, no norte e noroeste do país. Porém, sua neutralidade original passa por constantes enfrentamentos com os dois lados.

Os mais inflamados combatem, desde meados de julho, com grupos afinados com a rede Al Qaeda, supostamente apoiados pela Turquia, país que não vê com bons olhos a criação de uma nova entidade política curda em suas fronteiras. No momento, nem Bagdá nem Damasco têm algum registro sobre o tráfego de bens e pessoas que acontece diariamente aqui há mais de um ano.

Após o controle na fronteira iraquiana, os membros do cortejo fúnebre recebem um papel com seu nome que permite que embarquem em uma das duas barcaças que fazem o trajeto através do rio Jabur. A comitiva que acompanha Gulnaz cuida de colocar o caixão na barca. Alguns dos homens dentro de seus shal-e-sapik (a vestimenta tradicional curda) tentam conter as lágrimas, enquanto duas mulheres se expressam por meio do serkeftim, um grito sincopado que serve para expressar desde a alegria absoluta até a dor mais profunda.

Gulnaz cobre seu rosto com as duas mãos enquanto é guiada até a embarcação entre choros. “Tudo isso será muito mais fácil quando acabar a construção da ponte sobre o rio”, disse Sherwan, o piloto da barca, apontando para duas escavadoras amarelas que já trabalham na margem síria. A ponte provisória, construída à nossa esquerda, é reservada para os veículos. Mas, cerca de 30 mil pessoas a atravessaram em agosto vindas da Síria durante uma fuga em massa, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Essa agência estima em 200 mil os refugiados em solo iraquiano.

São apenas cinco minutos de travessia sobre as tranquilas águas do Jabur. Os familiares de Gulnaz esperam na margem síria para descarregar o caixão. Pouco depois, as bagagens dos recém-chegados serão revistadas por dois jovens usando uniforme da Asayish, a recém-criada polícia curda da Síria.

Hasim Mohammad, comandante em chefe dessa força, disse à IPS que se trata de um corpo formado por quatro mil voluntários, que se somam aos 40 mil integrantes dos Comitês de Resistência Populares (YPG), um autêntico exército que, no momento, está sendo capaz de conter o avanço de extremistas islâmicos na região. Parte de seu financiamento depende do tráfego por esta fronteira, já que cada passageiro deve pagar a taxa de mil libras sírias (quase US$ 7) na guarita levantada a poucos metros da margem.

Aqueles que desejarem repor as forças, antes de entrar em um dos táxis que esperam do outro lado da barreira, podem fazê-lo no improvisado restaurante instalado em um barracão anexo. A pressa para realizar o funeral leva a comitiva a desaparecer imediatamente na direção oeste, mas Massoud Hamid se senta para tomar um chá antes de seguir para Qamishli, sua cidade natal, 600 quilômetros a nordeste de Damasco.

Hamid é quem leva adiante o jornal Nû Denm (Novo Tempo), o primeiro escrito em curdo e árabe da Síria. Precisamente, viaja de volta com a tiragem integral que mandou imprimir em Erbil. “No Curdistão Sírio ainda não temos gráficas, mas tudo chegará”, disse à IPS este homem de 33 anos, que passou três na prisão por publicar fotos de crianças curdas se manifestando diante da sede do Fundo das Nações Unidas para a Infância em Damasco.

A coragem de Hamid foi reconhecida em 2005 pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Após ser libertado, se refugiou na França até que as condições lhe permitiram voltar à sua Síria natal onde, segundo disse, nada voltará a ser como antes. “Hoje temos que passar por todo o processo burocrático aduaneiro, mas o certo é que as duas margens são curdas”, opinou. “Na realidade, essa é mais uma das provas mais evidentes das mudanças que se avizinham no Oriente Médio no curto prazo”, ressaltou. Envolverde/IPS