Agosto de 2011, cidade do Rio de Janeiro. Aquele que era para ter sido tão somente mais um Congresso Internacional da Sociedade Brasileira de Geofísica, aliás, o 12º, transformou-se numa importante vitrine para uma equipe de pesquisadores de Geofísica do Observatório Nacional, sediado no Rio de Janeiro. No evento, a equipe anunciou uma descoberta que percorreu o mundo prontamente: um rio subterrâneo que se movimenta quatro quilômetros abaixo do Rio Amazonas. Por que tal acontecimento despertou tamanho interesse? Afinal, as águas subterrâneas são um fenômeno conhecido desde longa data. Os poços artesianos, as fontes, os aquíferos atestam. Além disso, a infiltração das águas em rochas calcárias possibilita a formação de cavernas e grutas, e nessas cavidades as águas escoam como riachos subterrâneos. A ilustração abaixo pode fornecer uma ideia da dimensão da descoberta, justificando tamanha repercussão na mídia e no meio científico.
Observe que o curso d’água em cena, batizado de Rio Hamza, em homenagem ao pesquisador de origem indiana e coordenador das pesquisas, Valiya Hamza, possui cerca de seis mil quilômetros de extensão. Mas não somente a distância percorrida impressiona. Em determinados pontos, sua largura pode chegar a 400 quilômetros e sua vazão média é de 3.090 metros. Para efeitos de comparação, o Rio Amazonas apresenta até cem quilômetros de largura no local pesquisado, e o Rio São Francisco uma vazão média de 2.700 metros.
Como tudo começou
Entre os integrantes da equipe de pesquisadores da Coordenação de Geofísica do Observatório Nacional está a doutoranda Elizabeth Tavares Pimentel, da Universidade Federal do Amazonas. A descoberta faz parte de suas pesquisas envolvendo estudos sobre geotermia, ramo da Geologia que estuda a temperatura do planeta em diferentes profundidades. Para os estudos de geotermia profunda, a pesquisadora valeu-se dos dados de temperatura de 241 poços perfurados pela Petrobras ao longo das décadas de 1970 e 1980, na Amazônia. Tais perfurações aconteceram em bacias sedimentares da região. Como se sabe, esse tipo de estrutura geológica pode estar associado à ocorrência de petróleo, razão pela qual foram realizadas as perfurações. Por outro lado, os terrenos sedimentares apresentam porosidade e permeabilidade tal que permitem não só o escoamento e a circulação da água, como tambem o seu armazenamento. Estas características auxiliam no entendimento do fenômeno. Na altura do Estado do Acre, a circulação da água é vertical até cerca de dois quilômetros de profundidade, onde muda de direção para, em profundidades maiores, ao redor dos quatro quilômetros, tornar-se quase horizontal. Nesse aspecto, o Rio Hamza mais uma vez se distingue do Amazonas: enquanto neste as águas se deslocam a uma velocidade de 0,1 a dois metros por segundo, naquele o fluxo se dá na ordem de dez a cem metros por ano. De fato, as rochas sedimentares se assemelham a uma esponja, ou melhor, o atrito causado pela rocha sedimentar impede o deslocamento mais rápido das águas.
A essa altura, duas breves conclusões podem ser tiradas. Em primeiro lugar, que um fenômeno dessas dimensões não pode acontecer em qualquer ponto da Terra. Além das condições climáticas, próprias da região equatorial, das particularidades geológicas e geomorfológicas da Amazônia, não se pode desprezar a extensão, a superfície onde o evento está se dando. Por exemplo, na África Equatorial há uma semelhança do ponto de vista climático na chamada Bacia do Congo. Contudo, os terrenos sedimentares africanos não se encontram orientados como no caso amazônico, tampouco atingem a faixa litorânea. Observe o planisfério.
Em segundo lugar, um trabalho com o alcance do realizado pela Petrobras na Amazônia brasileira também não se verifica em território africano. Até porque, naquele continente, a região da Bacia do Congo encontra-se compartilhada por diversos países.
Feitas essas considerações, não pode ficar de fora dessa breve reflexão o entendimento que se tenha de rio. Será o Hamza, de fato, um rio mesmo que subterrâneo? Nos debates que se seguiram à exposição da equipe do Observatório Nacional, houve quem questionasse se tal corpo d’água pode ser enquadrado como um rio ou se não seria tão somente um aquífero. Entre os argumentos foi citada a velocidade do fluxo das águas subterrâneas, tida como muito inferior àquela própria de um rio. Contudo, qual velocidade deve ser tomada como referência? A isso se pode incluir outra observação, de caráter escalar: aquilo que no Sul do país pode ser tomado como um “verdadeiro” rio, na Amazônia não passaria de um igarapé. Ou seja, no atual estágio da pesquisa a respeito do Hamza, parece prematura a necessidade de se levantarem critérios que possam ou não justificá-lo enquanto rio.
Por fim, e buscando apontar para a relevância do achado, o volume de água que chega ao Oceano Atlântico pode ser associado à ocorrência de verdadeiros bolsões de baixa salinidade na margem continental, isto é, nas bordas laterais do continente junto à foz do Rio Amazonas. Na medida em que o entendimento sobre o processo de formação do Rio Hamza e sua relação com o ambiente da região amazônica avançam, certamente algumas lacunas serão preenchidas e verdades tomadas como definitivas. Importa destacar que os limites acerca da exploração dos recursos amazônicos, ou das relações sociedade–natureza, ficarão mais claros. Considerando-se as dimensões amazônicas e o alcance dos processos que se desenrolam na região, é de se esperar que os cuidados ambientais sejam redobrados. Nesse sentido, a descoberta do Rio Hamza é bem-vinda ao campo das lutas pela manutenção do equilíbrio dinâmico da biosfera.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.